Entenda como foi transplante de útero inédito realizado por brasileira
Apesar de ter nascido prematura, a menina - que vai completar um ano no próximo dia 15 - está em perfeito estado de saúde
Em evento inédito, um bebê nasceu de uma mulher que recebeu transplante de útero de uma doadora que havia falecido, segundo revela estudo publicado na revista científica The Lancet. A mãe, uma brasileira que não teve seu nome divulgado a pedido da família, recebeu o transplante em 2016 e no fim do ano passado deu à luz a uma menina saudável, que vai celebrar o primeiro aniversário no próximo dia 15.
Esse é o único caso de transplante uterino a partir de uma doadora morta a gerar um bebê – dezenas de tentativas fracassadas foram feitas anteriormente nos Estados Unidos, República Tcheca e Turquia. O sucesso também coloca o Brasil como pioneiro na América Latina para um nascimento mediante transplante de útero.
A norma atual sobre o procedimento define que o útero doado venha de uma paciente viva para que o transplante seja viável. A primeira cirurgia desse tipo ocorreu em 2013, na Suécia. Desde então diversas cirurgias do gênero foram realizadas. “Foram realizados 56 procedimentos de transplante uterino em todo o mundo e esses transplantes geraram 13 bebês, incluindo o nascimento documentado no novo estudo de caso”, disse Mats Brännström, pesquisador envolvido no primeiro transplante uterino bem sucedido do mundo, em e-mail à CNN.
Para Dani Ejzenberg, médico brasileiro que liderou o novo estudo, os bons resultados alcançados com o transplante post-mortem mostram que a técnica é viável e oferece às mulheres que sofrem de infertilidade uterina acesso a um banco maior de doadoras em potencial. No entanto, o pesquisador acrescentou que ainda é necessário comparar os resultados e efeitos de doação de útero de doadoras vivas e mortas para descobrir de que forma a técnica pode ser refinada e otimizada. O que se sabe é que a transplantada está bem, assim como a criança, indicando o sucesso do procedimento.
O transplante
O útero é o órgão reprodutor feminino sendo responsável por nutrir o feto até o nascimento. Um problema no útero pode diminuir a fertilidade da mulher ou causar infertilidade. A paciente que recebeu o transplante nasceu sem o órgão por causa de uma síndrome conhecida como Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser – uma má formação congênita que afeta uma em cada 4.000 ou 5.000 mulheres.
As principais características da doença são vagina e útero subdesenvolvidos ou ausentes; já a genitália externa é normal. “A paciente em questão sofria da síndrome de Mayer-Rokitansky–Küster-Hauser [MRKH], o que significa, na prática, que ela nasceu com os ovários, porém sem o útero. As mulheres que possuem essa síndrome produzem os hormônios e ovulam, mas nunca menstruam”, explica Márcio Coslovsky, especialista em Reprodução Humana e diretor da Clínica Primordia.
O transplante de útero na paciente brasileira aconteceu em setembro de 2016, quando ela tinha 32 anos. A doadora do órgão, de 45 anos, foi considerada uma boa candidata porque teve três partos vaginais durante a vida, não teve relato de doença sexual e apresentava compatibilidade sanguínea com a receptora. Por ter falecido em decorrência de acidente vascular cerebral (AVC), ela ainda conseguiu doar outros órgãos (coração, fígado e rins) para outros pacientes.
A operação, que durou mais de dez horas, envolveu conectar as veias e artérias, além dos ligamentos e canais vaginais da receptora com o útero doado. Durante oito dias, a brasileira permaneceu no hospital, onde recebeu cinco medicamentos de imunossupressão para manter sob controle o instinto natural do corpo de combater e rejeitar um órgão transplantado.
A gestação
Cinco meses após o transplante, não houve sinais de rejeição ao órgão e, pela primeira vez na vida, a paciente experimentou a menstruação. Dois meses depois, ela recebeu um embrião e conseguiu engravidar. Segundo a pesquisa, antes de passar pelo transplante, ela havia tentado uma fertilização in vitro (FIV).
“Foram aspirados óvulos do ovário da paciente [antes da cirurgia]. Eles foram fertilizados em laboratório (FIV), congelados e formaram embriões. Como a parte embrionária já estava pronta pela fertilização, depois do transplante, o útero foi preparado com hormônios para receber a gravidez, que deu origem a um bebê saudável, conforme relata o estudo”, comentou Coslovsky, que também é membro da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA) e da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia (ESHRE, na sigla em inglês).
Apesar de apresentar uma infecção renal durante a gestação, a gravidez transcorreu sem dificuldades e o bebê nasceu por meio de parto cesariano no dia 15 de dezembro de 2017. Apesar de ter nascido prematura (na 36ª semana), os médicos consideraram oportuno já que evitou possíveis complicações ao final da gestação. A menina nasceu com 2,5 kg e apresentou perfeito estado de saúde. O mesmo foi registrado na mãe, que teve o útero retirado durante a operação para permitir a suspensão do tratamento imunossupressor. As duas deixaram o hospital apenas três dias depois do parto.
Pioneirismo
Em nota, Andrew Shennan, do Kings College, na Inglaterra, destacou que este é o único caso em que a gravidez foi bem sucedida “apesar do útero ter ficado sem oxigênio por oito horas antes do transplante”. Para ele, o novo estudo foi capaz de provar que o órgão pode permanecer funcional mesmo depois de ser armazenado em baixa temperatura e sem oxigênio por quase oito horas. No procedimento com doador vivo, o tempo médio entre a retirada do órgão e a sua implantação no corpo da receptora é de duas horas.
O obstetra, que não esteve envolvido na nova pesquisa, acrescentou que este caso “abre a possibilidade de mulheres doarem seu útero após a morte, assim como ocorre com outros órgãos”. Essa também é uma boa notícia para pacientes com problemas uterinos, que não vão mais depender de doadores vivos ou precisar recorrer a outras alternativas, como barriga de aluguel e adoção. “Com um doador falecido, você ainda reduz riscos. Além disso, é possível diminuir custos porque não é necessário a hospitalização do doador nem a longa cirurgia para a retirada do órgão no doador vivo”, disse Ejzenberg ao The Guardian.
Já para Brännström, embora o sucesso dos transplantes de útero – com doador vivo e morto – tenha sido comprovado, a técnica ainda precisa ser replicada por várias equipe ao redor do mundo para ter validação adicional.
Infertilidade
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a infertilidade atinge cerca de 15% a 20% da população brasileira, representando um em cada cinco casais em idade reprodutiva. Especialistas indicam que há diversas causas para o problema, como idade (homem e mulher), consumo de álcool e drogas, instabilidade no peso, além de estresse físico e emocional. Outro motivo que pode interferir na fertilidade são questões sociais, como um número maior de mulheres que adiam a gravidez para garantir estabilidade profissional e financeira.