Em 20 anos, Bolsa Família reduziu mortes em 20%, diz estudo
Programa de transferência de renda evitou 700 mil óbitos e milhões de hospitalizações

Uma pesquisa publicada nesta quinta-feira, 29, joga luz sobre os efeitos do Bolsa Família na saúde pública. De acordo com o estudo, o programa de transferência de renda está associado a uma redução de quase 20% nas mortalidades no país em duas décadas.
A investigação foi conduzida pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia em parceria com instituições latinas e europeias e foi publicada na renomada The Lancet Public Health. O que os dados mostram é que o Bolsa Família está ligado à prevenção de mais de 700 mil mortes e de 8,2 milhões de hospitalizações entre 2000 e 2019.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores utilizaram modelos estatísticos para avaliar o efeito do programa independentemente de outros fatores que interferem na saúde. Ou seja, a partir do estudo é possível estabelecer, com alguma confiança, que o efeito é mesmo causado pela transferência de renda, e não por fatores como a redução da pobreza, o aumento do número de médicos ou a taxa de urbanização.
“Geralmente, nós consideramos que a genética, o estilo de vida e a relação com o ambiente são os únicos responsáveis pelas doenças e pela morte”, diz Gonzalo Vecina Neto, docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. “Mas os determinantes sociais, menos levados em conta, potencializam o efeito de todos os outros.”
Como o Bolsa Família impacta a saúde?
A transferência de renda é, certamente, uma ferramenta importante. “Coisas essenciais para melhorar o bem estar social são fundamentalmente criadas pelo dinheiro”, afirma Vecina. Isso, contudo, não explica todo o efeito.
O estudo encontrou uma relação de dose resposta, ou seja, quanto maior a transferência de renda, melhores os resultados de saúde. Mas não é como se as famílias estivessem recebendo uma fortuna. Geralmente os valores transferidos são suficientes para garantir que os indivíduos se alimentem, mas nada muito além disso.
Por isso, as condições impostas para que o usuário possa ter acesso ao programa são importantes. São elas a realização do pré-natal, a vacinação das crianças, o acompanhamento nutricional e a frequência escolar. Não por acaso, o efeito na infância é um dos mais proeminentes: 48% de redução das internações e uma diminuição de 33% nas mortes de crianças com menos de 5 anos.
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Mas eles não são os únicos beneficiados. Entre os idosos, o programa levou a uma redução das internações e das mortes de 64% e 23%, respectivamente. Mas se não existem condições de saúde para esse grupo atrelados ao programa, por que esse impacto ocorre?
Os especialistas afirmam que obrigar que as grávidas tenham acompanhamento médico e que as crianças sejam vacinadas e frequentem as escolas aproxima as famílias da comunidade e do sistema de saúde, melhorando o acesso médico de todos os integrantes – o que facilita o tratamento de condições crônicas e o diagnóstico de doenças que podem se agravar.
Mas não para por aí. “A desigualdade é uma máquina de violência e morte”, diz Jussara Otaviano, enfermeira especialista em educação e embaixadora do Prêmio de Enfermagem Rainha Silvia da Suécia. “Lidar com a desigualdade também melhora a condição social da população. Doença, pobreza e violência são frutos da desigualdade de renda.”
O Bolsa Família, sozinho, é suficiente?
A importância do programa é ressaltada por especialistas, não apenas pelo seu aspecto financeiro, mas pela possibilidade de mobilidade social. “A pobreza também leva a uma falta de consciência de direitos”, diz Vecina. “Quem não tem dinheiro ignora condições de saúde porque não sabe que pode ter acesso a esse direito. O dinheiro garante contato com fontes de informações que antes eram desconhecidas.”
Ele e Otaviano refutam a ideia de que o programa cria pessoas dependentes e defendem que a garantia do mínimo dá possibilidades para que essas pessoas busquem acesso a mais direitos, muitas vezes por meio da educação e do emprego.
Até agora, o programa atingiu 44 milhões de pessoas por ano desde a sua criação, em 2004. Projeções do estudo apontam, contudo, que uma expansão para atingir 100% das famílias que recebem menos da metade do salário mínimo pode prevenir mais 8 milhões de hospitalizações e 680 mil mortes até 2030. A redução do programa, por outro lado, aumentaria significativamente a mortalidade em todo o país.
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Os especialistas avaliam, no entanto, que o Bolsa Família não é o único responsável pela melhora da saúde e da do bem estar social. “É preciso fortalecer o SUS e orientar políticas de saúde voltadas para população negra, em situação de rua, indígena e LGBTQIA+”, afirma Otaviano. “Isso automaticamente resultará em um impacto maior na saúde da população brasileira.”
As políticas de acesso à alimentação, por exemplo, também são essenciais. Até 2018, elas ajudaram a reduzir a desnutrição para 4,8% em todo país, mas a interrupção durante o governo Bolsonaro provocou um aumento, chegando a 5,6% da população em 2019. Programas de saúde comunitária e acesso à educação, como as cotas, também tiveram um grande impacto na redução da desigualdade.