Descobertas mostram que respeitar o relógio biológico pode ser um remédio valioso
Priorizar certos momentos do dia para algumas atividades é excelente tática para equilíbrio físico e mental

Eis um princípio tão antigo quanto a vida na Terra: os ciclos diários de luz e escuridão dão corda a uma rede de hormônios e células que regula o corpo humano (e o de inúmeros outros animais), tornando-o apto a repousar e restaurar as energias à noite e usá-las a todo o vapor pela manhã. Mas foi só em meados do século XX que uma dupla de cientistas americanos decidiu investigar essa história a fundo. Eles se isolaram dentro de uma caverna a fim de desvendar qual seria o impacto da ausência dos raios solares e da passagem dos dias no organismo. E surpreenderam-se: apesar da ausência de fontes luminosas, o corpo mantinha seu ritmo, como se soubesse o melhor momento de descansar e levantar. Parecia haver uma espécie de relógio interno. Bingo! Nascia, assim, o campo da cronobiologia, o ramo da ciência que investiga a influência do tempo em nossa vida.
Desde a década de 1960, quando o termo foi utilizado pela primeira vez, as pesquisas explodiram. Descortinou-se todo um complexo circuito de hormônios que coloca nossas células em modo de economia de energia e as ativa, o que tem reflexo em nossa melhor aptidão para certas atividades. É o chamado ritmo circadiano. “Esse controle acontece no cérebro, mas cada célula tem seu ciclo próprio e precisa se ajustar a ele”, afirma Fernando Louzada, líder do laboratório de Cronobiologia Humana da Universidade Federal do Paraná. Além disso, constatou-se que, apesar dos horários padrão para o convívio em sociedade, há de fato quem funcione melhor de manhã e aqueles mais frenéticos à noite — depende do seu cronotipo.

Mais recentemente, estudos vêm apontando que sincronizar a rotina com o relógio biológico individual pode proporcionar inúmeros benefícios. “A desorganização desse sistema sinaliza falhas para a saúde”, diz Louzada. O primeiro ponto que se tira de conclusão é que, a despeito de o indivíduo ser matutino ou vespertino, ele precisa respeitar o tempo de descanso, de preferência na calada da noite. É que o sono é elemento decisivo para manter as engrenagens do organismo azeitadas. Ao privar-se dele, o ritmo circadiano entra em parafuso e abre-se caminho a uma série de doenças. A orientação dos especialistas, então, é definir horários fixos para deitar e acordar e cumprir entre sete e oito horas de repouso, uma vez que o corpo gosta de rotina.
O segundo preceito tem a ver com o autoconhecimento. Quem não funciona de manhã provavelmente precisa de umas horas a mais na cama a fim de manter o fôlego nas altas horas. Decifrar o cronotipo ajuda a balizar justamente a agenda, inclusive o momento de apagar as luzes. O próprio horário das refeições passa pelo relógio biológico. Uma nova pesquisa da Universidade de Aberdeen, na Escócia, revela que o que e quando comemos repercute na maneira como o corpo usa o combustível das refeições. “Isso impacta significativamente o controle glicêmico e a saúde metabólica”, diz a pesquisadora e autora do trabalho, Alexandra Johnstone. Nesse sentido, a ciência prescreve manter a maior ingestão de calorias pela manhã e priorizar opções leves à noite. Sim, o organismo também reduz suas necessidades energéticas de acordo com o ciclo diário. Seguir essa premissa à risca ajuda a evitar ganho de peso, diabetes e hipertensão.
Outra linha de experimentos se debruça nas variações de humor ao longo das 24 horas — informação valiosa que pode ser usada no momento de tomar decisões. Um levantamento britânico constatou, por exemplo, que o pico de bem-estar costuma ocorrer no período da manhã. Ou seja, sob menos tensão, seria mais prudente analisar investimentos e planejar projetos nessa janela. Hoje se sabe que até o funcionamento de alguns medicamentos depende do relógio biológico. Enquanto certas drogas, como as estatinas, para o controle do colesterol, tendem a agir melhor à noite, médicos já miram o ritmo dos pacientes ao programar o regime de quimioterapia para debelar o câncer.
A grande questão é: como sintonizar nosso temporizador interno com as exigências e a correria da vida real? Sim, os genes influenciam bastante nossas particularidades e preferências de horário, mas é possível se adaptar gradualmente — não é preciso viver sob a sensação permanente de jet lag, outro desajuste dos relógios interno e externo. Para tanto, descobrir o próprio ritmo corporal faz diferença. Como? “É possível manter um diário de sono e humor, inclusive nos fins de semana, para entender as reações e sensações do organismo”, diz o neurocientista Luiz Menna Barreto, professor da USP. Mudanças coletivas também são bem-vindas. Sabe-se que adolescentes realmente são mais vespertinos, enquanto idosos, matutinos. Então faz todo sentido iniciar o colégio um pouco mais tarde e abrir serviços para o público 60+ mais cedo. Com esse ajuste fino, o ser humano se torna mais saudável e produtivo. E não precisa brigar com a própria natureza.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935