Crise do metanol acende alerta e mostra difícil combate à adulteração de bebidas
Internações e mortes por intoxicação desencadeiam uma força-tarefa para prevenir novas vítimas e estragos ao setor de bares
Nada, na aparência, difere o metanol, composto usado na fabricação de solventes, tintas e outros produtos industriais, do etanol das bebidas alcoólicas. Ele não muda o cheiro, a cor nem o sabor de um drinque. Daí ter virado um ingrediente barato, ainda que totalmente inapropriado, para “batizar” destilados pelo país. O resultado desse truque pôde ser visto da forma mais traumática e cruel nos últimos dias. Até o fim da tarde de quinta 2, uma morte havia sido atribuída à intoxicação em São Paulo e outras cinco encontravam-se sob investigação. Ocorreu ainda a notificação de quase quatro dezenas de internações, possivelmente provocadas pelo mesmo motivo, com suspeitas de episódios brotando agora em Pernambuco. A situação desencadeou uma força-tarefa que envolve a Polícia Federal para coibir as ações criminosas, órgãos de saúde para prestar socorro imediato às vítimas e medidas de conscientização para não impactar os bares e restaurantes — que em grande e ruidosa maioria atuam de forma plenamente lícita.
Usado nos processos de adulteração para baratear o custo das bebidas e aumentar o teor alcoólico, o metanol é uma substância que se torna mais tóxica dentro do organismo, interferindo no funcionamento de diversos órgãos e alterando até o pH do sangue, tornando-o mais ácido. Assim como o etanol, ele é transformado em outras substâncias no fígado. E é assim que uma reação em cadeia devastadora pode acontecer. Ali, ele vira formaldeído e ácido fórmico, duas moléculas que causam danos graves aos rins, aos olhos e ao sistema nervoso. “Não existe uma dose mínima segura para a ingestão de metanol”, diz o toxicologista Alvaro Pulchinelli Jr., presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial. “A pessoa pode tomar uma única vez e apresentar sintomas graves.” Por essa razão, o Ministério da Saúde emitiu uma nota recomendando que, se houver suspeita de contaminação, como a presença de cólicas, náuseas e alterações visuais de seis a 24 horas depois do consumo de bebidas, as pessoas procurem atendimento médico quanto antes para receber um antídoto. “Não é queimação, não é azia. A dor é em cólica, algo que chama atenção nesses casos”, disse o ministro Alexandre Padilha, buscando diferenciar essas manifestações daquelas tipicamente atribuídas a uma ressaca.
Bastam 10 ml de metanol concentrado, o equivalente a uma colher de sobremesa, para enfrentar reações como a destruição de células do nervo óptico. Foi o que ocorreu com uma das vítimas, atendida com queixa de cegueira depois de consumir destilados. Manchas escuras, luzes e flashes à vista acendem o alerta e a necessidade de ir a um hospital para conter os danos. “Quando a célula nervosa morre, não tem como reverter. Não existe tratamento para isso”, diz o oftalmologista Fábio Ejzenbaum, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que socorreu um dos casos. Se a dose é maior, os desfechos se agravam. Duas colheres de sopa ou 30 ml podem levar à morte. “O perigo é que as pessoas só se dão conta do problema depois do quadro de intoxicação”, afirma Pulchinelli Jr.
Apenas análises laboratoriais podem constatar a presença desse álcool em bebidas engarrafadas — qualquer teste caseiro é desaconselhável, diga-se. O que acendeu o alerta das autoridades sobre a contaminação foi uma movimentação atípica nos indicadores de intoxicação, com o relato dos primeiros episódios em junho, segundo a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. A partir de agosto, a situação se avolumou. No Brasil, cerca de vinte casos de intoxicação por metanol são registrados por ano e estão relacionados principalmente ao uso por moradores de rua que convivem com a dependência alcoólica ou em tentativas de suicídio. Desta vez, porém, a curva ascendente disparou o alarme. “Em agosto e setembro, tivemos o volume do que se esperaria para um ano todo concentrado em um só estado”, disse Padilha.
Embora nada indique haver risco de proporções epidêmicas, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal anunciaram a abertura de um inquérito para investigar a escalada de casos e a possibilidade de a distribuição de bebidas contaminadas ter chegado a outros estados. Em Pernambuco, duas mortes e um caso de cegueira são apurados. No primeiro balanço sobre as fatalidades em São Paulo, a secretaria estadual de Saúde indicou que as três primeiras vítimas, de São Bernardo do Campo e da capital paulista, eram um homem de 58 anos, outro de 54 anos e um terceiro de 45 anos. Outros dois registros foram citados pelo governador Tarcísio de Freitas durante o anúncio da criação de uma sala de emergência para lidar com a crise.
Operações para desmantelar o esquema criminoso já estavam em andamento e foram intensificadas. O mínimo que se espera é que os responsáveis pela contrafação sejam detidos e punidos. Os estabelecimentos onde os casos ocorreram foram fechados para dar andamento às investigações e seus nomes não foram divulgados oficialmente. Em Americana, no interior paulista, agentes fizeram uma inspeção em uma fábrica clandestina de uísque, gim e vodca em uma chácara na zona rural e recolheram quase 18 000 produtos. No entanto, não encontraram metanol. “Nos últimos dias, apreendemos cerca de 50 000 garrafas de bebida com suspeita de adulteração e 15 milhões de selos fraudados. Temos um problema que não é só do estado de São Paulo, é um problema do Brasil”, declarou o governador paulista. Outras 128 000 garrafas de vodca foram lacradas em Barueri, na Grande São Paulo, até a entrega de documentação.
A possibilidade de espraiamento para outras regiões levou a Polícia Federal a entrar no caso, inclusive para sondar a participação de células do crime organizado nas fraudes. Entidades chegaram a aventar a possibilidade de envolvimento do PCC no escoamento do metanol utilizado em esquemas de postos de combustíveis para as distribuidoras ilegais de bebida, alegação refutada por Tarcísio de Freitas. “Agora, tem esse negócio em São Paulo de tudo o que acontece é PCC. Só para deixar claro: não há evidência nenhuma de que haja crime organizado nisso”, disse. As apurações policiais indicam que as pessoas que atuam nas destilarias clandestinas não têm relação com facções nem entre si. Ainda é preciso, contudo, dimensionar o tamanho do delicado problema.
A adulteração de bebidas alcoólicas é um imbróglio estrutural no setor. Casos de intoxicação e morte por metanol e outros compostos ganharam notoriedade na região do ABC paulista e na Bahia ainda nos anos 1990. Mesmo que as ações policiais escancarem cargas com garrafas que tiveram seus conteúdos adulterados em fábricas clandestinas, o esquema está razoavelmente consolidado. Um estudo elaborado pela Federação de Hotéis, Bares e Restaurantes do Estado de São Paulo dá uma ideia dos impactos econômicos dos golpes. Segundo o documento, 36% das bebidas em circulação no país podem ser falsificadas, adulteradas ou contrabandeadas, representando uma perda anual de 85 bilhões de reais para o segmento. “Vemos com muita preocupação os casos recentes, mas infelizmente não com surpresa”, afirma Edson Pinto, diretor-executivo da entidade. “Há tempos percebemos uma escalada progressiva da falsificação. É uma concorrência desleal com os empresários que atuam legalmente e que, felizmente, são a maioria do setor.”
A resolução da crise não é simples e exigirá a colaboração de várias instâncias e atores. “Um caminho possível é fazer uma força-tarefa para checar a quantidade de garrafas em estoque e bater as informações com as notas fiscais”, diz o advogado Arthur Rollo, ex-presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria. “Outra possibilidade é levar representantes das marcas de bebidas e importadoras e membros de associações de bares para percorrer os estabelecimentos e identificar irregularidades”, completa. São ações trabalhosas, mas que podem garantir a segurança dos clientes. A meta da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) é identificar cada elo da logística relacionada aos episódios de intoxicação para agir de forma mais incisiva. “Vamos tentar descobrir quem são os fornecedores, quem são as pessoas que manipularam as bebidas e quais delas foram ingeridas pelas vítimas em cada estabelecimento”, afirmou o secretário da pasta, Paulo Henrique Pereira. Em meio ao turbilhão, o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, desencavou um projeto de lei de 2007 que transforma a falsificação de bebidas em crime hediondo e anunciou a votação de urgência.
Embora não haja uma maneira 100% eficaz de identificar uma bebida adulterada, existem algumas orientações divulgadas que ajudam a detectar irregularidades. A própria embalagem é o primeiro ponto de atenção. Formatos e rótulos diferentes pedem cautela. Muitas vezes, os falsificadores usam as garrafas originais que não foram devidamente descartadas. Portanto, marcas de rasura e sujeira devem acender o cuidado. O lacre e a tampa costumam ser pontos fracos no trabalho dos falsificadores, já que os fabricantes investem em tecnologia de vedação justamente para evitar fraudes. Toda garrafa deve ter um contrarrótulo em português, com informações do produtor ou importador e CNPJ. “Além disso, nossa recomendação é que o cliente procure estabelecimentos reconhecidamente de boa reputação, que possam apresentar o lastro documental da compra das bebidas”, afirma Cristiane Souza Foja, presidente da Associação Brasileira de Bebidas, entidade que mantém uma série de iniciativas contra o problema, de treinamentos feitos com equipes de bares e restaurantes a campanhas em eventos como o Carnaval.
Desde que as notícias sobre os casos de intoxicação por metanol começaram a ganhar força, muitos bares, restaurantes e hotéis foram às redes sociais para reforçar o compromisso com a compra de garrafas de maneira legal e a preocupação com a segurança de quem consome as bebidas em seus estabelecimentos. Nos últimos dias, a movimentação se intensificou. Há um receio de que a venda de coquetéis e garrafas diminua, e a oferta de bebidas representa uma receita importante. Uma diminuição drástica do consumo pode afetar de forma severa o caixa desses bares e restaurantes. Mesmo estabelecimentos premiados e indicados em guias estão se manifestando publicamente em prol da causa — e dos fregueses, em postura fundamental.
A cautela é atalho para evitar uma desnecessária onda de pânico. As ações precisam estar atreladas ao desbaratamento de esquemas criminosos para preservar negócios ligados ao lazer que prezam pelo bem-estar de seus consumidores. As medidas investigativas e punitivas devem se inspirar nas orientações médicas de socorro imediato para sufocar os efeitos deletérios do metanol na sociedade e desmantelar, com sobriedade, a engrenagem que transforma brindes e diversão em desgraça.
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2025, edição nº 2964


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