Crescei e multiplicai-vos: o que explica o recorde de nascimento de gêmeos
O grande avanço das técnicas de reprodução humana e o aumento das gestações entre as mulheres mais velhas estão entre as causas
Desde 1978, quando nasceu a americana Louise Brown, o primeiro bebê de proveta, a medicina de reprodução humana se desenvolveu extraordinariamente. Técnicas antes só imaginadas no cinema e na literatura de ficção futurista, como o congelamento de células extremamente delicadas que formam embriões em laboratórios e procedimentos que permitem a uma mulher engravidar já não mais em plena idade fértil, são hoje corriqueiras. Uma relevante implicação desse novo cenário, porém, só agora começa a chamar atenção com mais profundidade — a profusão do nascimento de gêmeos. Um estudo conduzido pelas universidades de Oxford, na Inglaterra, e de Radboud, na Holanda, mostrou que nunca vieram ao mundo tantos pares como agora. No tempo de Louise, a cada 1 000 partos, nove entregavam gêmeos. Hoje a taxa subiu para doze em 1 000. A cada ano, portanto, há 1,6 milhão de novos gêmeos sorrindo por aí.
Gêmeos nascem naturalmente quando um óvulo fertilizado se divide espontaneamente ao meio, levando a dois bebês idênticos, ou quando a mãe libera dois óvulos de uma vez que são fertilizados, produzindo gêmeos não idênticos. A interferência da medicina estimulou o segundo processo. Nos métodos de fertilização artificial, faz-se uso de hormônios para estimular o ovário, o que aumenta a probabilidade de liberação de dois óvulos de uma vez. Além disso, é comum (e permitido) as clínicas transferirem mais de um embrião para o útero simultaneamente, para aumentar as chances de que pelo menos um sobreviva.
Convém, ainda, considerar o papel de um aspecto de cunho comportamental ocorrido nos últimos anos: as mulheres estão engravidando naturalmente mais tarde, o que sob o ponto de vista biológico estimula o nascimento de gêmeos. Dados do IBGE mostram que entre 2008 e 2018 diminuiu em 16,1% o número de mulheres que tiveram filho com menos de 30 anos, enquanto aumentou em 36% entre aquelas que se tornaram mães após essa idade. A explicação para o fato de o organismo com mais idade ter mais chance de engravidar de gêmeos é fascinante: a proteção da espécie. Ao contrário dos homens, elas nascem com um número determinado de óvulos de células sexuais, que são dispensadas ao longo da vida, a cada ciclo menstrual. Com o passar dos anos, a quantidade e a qualidade dessas células diminui. Uma criança nasce com 1 milhão a 2 milhões de óvulos. Aos 40 anos, essa reserva praticamente já se esgotou. Só que, à medida que a idade avança, também aumenta a probabilidade de a mulher liberar dois óvulos ao mesmo tempo, como uma forma do corpo tentar compensar o aumento do risco de aborto pela queda na fertilidade.
Toda essa grande mudança científica tem, no entanto, um efeito colateral preocupante. Diz o especialista em reprodução assistida Rodrigo Rosa, diretor clínico da Mater Prime, em São Paulo: “A incidência de problemas na gestação de gêmeos, originada em laboratório ou não, é maior”. Gêmeos têm cerca de quatro vezes mais risco de morrer no fim da gestação ou na primeira semana de vida — com trigêmeos esse risco é sete vezes maior. Nos últimos anos, a medicina conseguiu minimizar uma das situações mais dramáticas decorrentes de uma gestação de gêmeos, as sequelas ou morte de bebês prematuros. “Hoje, as UTIs neonatais conseguem sustentar e fazer ganhar peso crianças que nascem com apenas 500 gramas, o equivalente a um feto de seis meses, ainda sem os pulmões formados”, diz Edson Borges, diretor médico da clínica Fertility, em São Paulo. Há dez anos, muito raramente um bebê com menos de oito meses sobrevivia sem sequelas. “Sede fecundos, crescei e multiplicai-vos e enchei a terra.” A máxima de mais de 2 000 anos descrita no Gênesis da Bíblia ganha agora ares de modernidade.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731