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Condição hereditária comum, doença falciforme é negligenciada no Brasil

Nova droga para diminuir crises de dor, conscientização de médicos e mapeamento de pacientes podem melhorar a qualidade de vida das pessoas com a doença

Por Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 out 2021, 13h53 - Publicado em 27 out 2021, 11h43

Mesmo sendo uma das condições genético hereditárias predominantes no Brasil e classificada como um dos maiores desafios da área da saúde em todo o mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e Unesco, a doença falciforme ainda é negligenciada no Brasil. A enfermidade é caracterizada por uma alteração genética nas hemácias (glóbulos vermelhos que carregam oxigênio), que assumem um formato de foice – daí o nome – rompem-se com mais facilidade, provocando anemia e fortes crises de dores musculares causadas pela falta de oxigenação dos tecidos. Elas são tão intensas que frequentemente levam à hospitalizações.

Apesar das estimativas alarmantes – atualmente são cerca de 70.000 doentes, com 3.500 novos casos por ano no país – muitos médicos não conseguem identificá-la, o que dificulta o diagnóstico e, por consequência, as chances de o paciente conseguir um tratamento adequado para a condição. “Embora seja muito comum, a maioria das pessoas nunca ouviu falar em doença falciforme. E são pacientes que necessitam de cuidados apropriados, especialmente durante as internações que costumam ser longas e complicadas” , diz Marimilia Pita, médica hematologista pediátrica do Hospital Samaritano, de São Paulo, e fundadora do Comitê de Pediatria da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia.

A especialista também é responsável pelo Comitê Científico da  Aliança Global de Organizações de Doença Falciforme (GASCDO) e idealizadora do projeto Lua Vermelha, que tem como objetivo jogar luz à luta das pessoas contra a doença e disseminar informações técnicas pautadas em bases científicas por meio de mídias sociais e construir uma imagem mais altruísta da condição, comparando a hemoglobina disforme com uma lua. “A ideia é atenuar e fazer com que as pessoas e autoridades entendam que esses pacientes merecem ser bem tratados e respeitados”, completa a médica.

Uma das questões abordadas pela instituição é quebrar estigmas que rondam a condição justamente pela falta de conhecimento de médicos e da população em geral. A começar pela falsa ideia de que só acomete indivíduos da raça negra, pela origem africana do gene. “Existe um mito sobre isso, mas ela também atinge brancos. Em um país como o Brasil, altamente miscigenado e que ainda luta contra o racismo estrutural, uma doença que se acredita ser exclusiva de negros é, consequentemente, ligada às classes sociais menos favorecidas”, explica Marimilia.

O resultado é a falta de apoio às instituições que atendem esses pacientes, à pesquisa e à preparação dos profissionais da saúde, como alerta a hematologista. “Não é raro um paciente chegar ao pronto socorro de um hospital com crises de dores muito fortes, reflexo da falciforme, em busca de ajuda e medicação e, ao invés de acolhimento, encontrar desconfiança e até mesmo ser rotulado como um viciado”, acrescenta.

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Apesar de sua gravidade e alta incidência é também negligenciada pelas políticas públicas de saúde. Vale ressaltar que esse fardo é muito maior nos países pobres. Na África, por exemplo, a chance de portadores de anemia falciforme morrerem antes dos 5 anos é de 50% a 90%. Já em nações desenvolvidas como nos Estados Unidos e Reino Unido, as taxas de sobrevivência de crianças portadoras da falciforme são similares às das saudáveis.

Além dos episódios de dores intensas, causadas pelas células deformadas que obstruem os vasos sanguíneos, e complicações em praticamente todos os órgãos do corpo por necrose e morte celular, a anemia falciforme aumenta e muito a probabilidade de ocorrência de outras doenças graves como o infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC), doença renal crônica e embolia pulmonar, sem contar as sequelas neurológicas.

Crônica e sistêmica, ela necessita de acompanhamento médico constante, mas o que mais ajuda a evitar o agravamento e evolução para outras comorbidades é o diagnóstico precoce, obtido pelo exame de triagem neonatal, conhecido como teste do pezinho. Ao se observar a alteração do gene no nascimento, o bebê pode ser encaminhado diretamente a um especialista – hematologista pediátrico – para que comece um acompanhamento médico e receba tratamento adequado. O diagnóstico precoce acompanhado da profilaxia reduz a mortalidade nos primeiros cinco anos de vida de 25% para 3%.

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Para diminuir o sofrimento dos pacientes, os hematologistas recorrem a constantes transfusões de sangue e ou uso da hidroxiureia, medicamento que aumenta a produção de uma proteína chamada hemoglobina fetal e diminui a quantidade de Hb S, dificultando a polimerização da célula defeituosa e reduzindo o risco de vaso-oclusão. Aprovado no Brasil em 2002, o remédio passou uma longa espera por aprovação mesmo tendo eficácia comprovada durante dez anos e nenhum registro de efeitos colaterais significativos, diferentes das sequelas reais e graves promovidas pela doença.

Mas, para sua administração, também existem problemas: um deles é não saber se pode ser utilizado a partir do nascimento. O medicamento geralmente é usado apenas após crises subsequentes, o que já compromete a qualidade de vida dos pacientes. Falar em cura é ainda mais complicado. A única forma é por meio de um transplante de medula óssea, que depende de critérios de elegibilidade, doador compatível e de um melhor poder aquisitivo já que se trata de um procedimento caro e que deve ser feito por especialistas em centros de referência.

Mesmo com tantas questões, porém, a notícia de uma nova droga para a doença falciforme anima os especialistas. Aprovado recentemente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o anticorpo monoclonal crizanlizumabe, do laboratório Novartis, promete aliviar as dores da doença falciforme. Indicado para a inibir as crises vaso-oclusivas (CVOs) que induzem a dor severa, é aplicado por meio de infusões intravenosas mensais. Segundo o fabricante, nos testes, o medicamento reduziu a frequência das crises dolorosas em 45%. “Já está sendo utilizado nos Estados Unidos e Europa, e tem mostrado excelentes resultados nas crises de dor desses pacientes”, afirma Marimilia, que planeja ainda este ano começar um registro nacional de todas as pessoas com falciforme no Brasil por meio da Lua Vermelha em parceria com a Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH) e o Ministério da Saúde. “Até hoje não se sabe ao certo quantos pacientes há no Brasil. A intenção é mapeá-los e caracterizar o perfil epidemiológico para promover políticas públicas mais assertivas e, com esses dados, agilizar os tratamentos e melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. É o que eles mais necessitam”, finaliza a especialista.

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