Como o uso da inteligência artificial na medicina já está salvando vidas
Ferramenta está se consolidando como o melhor assistente de médicos e hospitais para acelerar diagnósticos e definir o melhor tratamento a pacientes

Quando o estetoscópio foi inventado, no início do século XIX, muitos médicos torceram o nariz. A ideia de usar um tubo para auscultar o peito parecia absurda — até então, o contato direto do ouvido do doutor com o corpo do paciente era visto como essencial. Algumas décadas depois, ninguém mais se arriscaria a atender sem o aparelho. Fenômeno semelhante ocorreu com exames de imagem como o raio X e a tomografia, capazes de revelar o que antes só era acessível via bisturi. Hoje, o divisor de águas, dentro e fora de clínicas, consultórios e hospitais, é a inteligência artificial (IA). Embora ainda divida opiniões, com seus detratores anunciando uma caixa-preta de forças incontroláveis, e os defensores alçando-a ao posto de maior aliada da medicina no século XXI, sua utilização já não pertence a um futuro utópico ou distópico. É o aqui e agora. Ela já presta serviço à triagem de pacientes em prontos-socorros, à detecção de anormalidades em exames, à predição da evolução de pacientes internados e ao monitoramento de UTIs. É ampla lista que ainda inclui aplicativos de saúde, smartwatches e outros recursos cada vez mais presentes no cotidiano. A revolução, sem dúvida, começou — e o caminho parece não ter mais volta.

Na prática, o mesmíssimo tipo de tecnologia que permite atender a comandos pessoais no cotidiano — como pedir a assistentes virtuais à la Alexa para tocar uma música ou a elaboração de um relatório no ChatGPT — hoje ajuda a identificar doenças e apoiar as decisões clínicas. A IA vasculha bilhões e bilhões de dados, dos prontuários eletrônicos às pesquisas, e encontra padrões que escapam aos olhos e neurônios humanos. Daí vêm seus insights e potenciais de uso. E eles já impressionam. Na renomada revista científica Nature, acabam de ser publicados os resultados de um programa chamado Delphi-2M, modelo de IA capaz de prever o risco de mais de 1 000 doenças ao longo da vida, incluindo Alzheimer, câncer e infarto. Para treinar o sistema, os pesquisadores botaram os algoritmos para trabalhar em dados de saúde de mais de 400 000 pessoas e, depois, avaliaram a precisão em outras 100 000. No acompanhamento, o programa obteve uma taxa de acerto de 76% na previsão de problemas que poderiam aparecer cinco anos depois. “Foi como ser uma criança em uma loja de doces”, resumiu a geneticista Ewan Birney, responsável pelo projeto.
No Brasil, essa história já extravasa laboratórios e o discurso dos entusiastas futuristas. Uma das primeiras aplicações, consagrada durante a pandemia de covid-19, foi no campo da radiologia, com o reconhecimento e a avaliação de exames de imagem. “A IA amplia o olhar do médico, reduz o tempo de análise e evita que detalhes decisivos passem despercebidos”, diz Marco Bego, diretor executivo do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas. Em poucos anos, o uso dos algoritmos no meio se expandiu exponencialmente. No Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, casos suspeitos de AVC — condição em que a agilidade faz toda a diferença para a sobrevivência e a prevenção de sequelas — passam por tomografias acopladas a IA que fornecem resultados em segundos, já mapeando as áreas afetadas pelo derrame. Na Rede D’Or e na Beneficência Portuguesa de São Paulo, exames enriquecidos com softwares do gênero detectam pneumonia e nódulos pulmonares invisíveis à visão dos médicos. E no Hospital Nove de Julho, também na capital paulista, o poder de imersão da IA em dados revisita todo o histórico de exames do paciente para apontar sinais iniciais de um câncer de mama. Em todas essas situações, rapidez e efetividade marcam os processos, o que vem sendo atestado por estudos. No fim, ganha o paciente e também o sistema: afinal, melhores desfechos clínicos frequentemente significam economia nas despesas e maior sustentabilidade para o setor.

Uma nova fronteira em expansão combina a IA a dispositivos médicos portáteis. No Einstein Hospital Israelita, em São Paulo, uma espécie de caneta high-tech é levada para a mesa de cirurgia para analisar na mesma hora tumores de pulmão e tireoide. Em noventa segundos, ela indica se a lesão é cancerosa ou não — algo possibilitado pelo algoritmo que compara a amostra local com milhares de outras já avaliadas. A depender do veredicto, o médico pode ou não remover a área problemática. Enquanto isso, e dentro da rede pública, cientistas da Unifesp testaram com sucesso aparelhos que, integrados à IA, permitem realizar exames de fundo de olho para antecipar o diagnóstico de retinopatia diabética, uma das principais causas de cegueira no mundo.
No dia a dia dos hospitais, além do uso massivo no diagnóstico e prognóstico de pacientes com câncer, uma das aplicações mais promissoras da tecnologia é o combate à sepse, popularmente conhecida como infecção generalizada. Ferramentas em uso têm uma acurácia superior a 80% em prever o quadro até quatro horas antes das manifestações iniciais. Tempo suficiente para intervir e evitar uma morte. Talvez o ganho mais palpável da IA para a medicina no momento seja justamente o tempo. “Conseguimos encurtar o período do diagnóstico e aumentar a assertividade do tratamento”, afirma Marcos Queiroz, diretor de medicina diagnóstica do Einstein, centro que adotou um algoritmo apto a predizer as chances de o paciente ser internado com base nos dados da triagem no pronto-socorro. Para além dos resultados em termos de sobrevivência e recuperação, especialistas veem na IA não uma forma de terceirizar o cuidado, mas de otimizá-lo. O assistente virtual ajuda o profissional a vasculhar o amplo conhecimento científico para tomar a melhor decisão e a catalogar os dados e prescrições do paciente. “Com isso, o médico tem mais tempo para se dedicar à pessoa e à sua família”, diz Queiroz.
Nessa direção, muito além da saúde privada, hoje se vê a expansão da IA nos domínios do SUS. As aplicações são balizadas pelo Plano Brasileiro de Inteligência Artificial e contemplam desde diagnósticos amparados por algoritmos e planejamento de compras de medicamentos por hospitais a monitoramento de pacientes idosos. Um exemplo concreto é o Núcleo de Telessaúde de Alagoas, que acompanha gestantes de alto risco em tempo real, dispara alertas automáticos a profissionais de saúde e gerencia encaminhamentos a unidades de maior complexidade — tudo em prol da redução da mortalidade materna e infantil. Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou o primeiro hospital inteligente do Brasil. Com investimento de 2 bilhões de reais, a unidade a ser inaugurada em três anos vai ocupar uma área de 150 000 metros quadrados no complexo do Hospital das Clínicas de São Paulo. A IA, claro, será uma das protagonistas. “A ideia é atender pacientes críticos com alta tecnologia: equipamentos de ponta, ambulâncias com conectividade, interação de dados e nenhuma fila de espera”, afirma a cardiologista Ludhmila Hajjar, coordenadora do projeto.
Em meio a um cenário em rápida evolução, o entusiasmo de uns anda lado a lado com a apreensão de outros. Para o húngaro Bertalan Meskó, conhecido como “o médico do futuro”, estamos transformando a ficção em realidade científica. E isso possibilitará que, em alguns anos, a maior parte das consultas seja guiada por IA, diagnósticos aconteçam em segundos e o clínico, liberto das tarefas burocráticas, tenha mais tempo para conectar-se com o paciente. “Não é tecnologia ou empatia. É tecnologia a serviço da empatia”, disse a VEJA. Mas há quem mantenha cautela. Computadores não são infalíveis e, na medicina, um erro mínimo pode ter consequências sérias — daí a preocupação. Uma pesquisa com 11 000 americanos, conduzida pelo Pew Research Center, mostrou a desconfiança dos pacientes em relação ao suporte ultratecnológico: 60% relataram se sentir desconfortáveis com médicos que dependem da inteligência artificial. Ainda assim, 40% reconheceram os benefícios das máquinas para a redução de falhas nos processos.

Diante da discussão, um consenso emerge: só com formação e treinamento adequados as equipes médicas podem tirar o melhor proveito do copiloto tecnológico em cada etapa do atendimento. Talvez esse seja o maior desafio da IA: concebida originalmente por humanos, ela depende deles para dar o seu melhor, ainda que pareça ter vida própria. “A tecnologia não substitui médicos, mas potencializa seu trabalho. É como um time em que um complementa o outro”, afirma Bego. O diagnóstico atual é que, mais do que instrumento de apoio, a IA está se consolidando como um eixo da medicina. Um recurso com potencial para personalizar o cuidado, prevenir doenças e salvar vidas na rotina de consultórios e hospitais. Tão indispensável quanto o bom e velho estetoscópio.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965