Com envelhecimento da população, casos de afasia se tornam mais frequentes
Bruce Willis e Angeli revelaram nas últimas semanas que estão se afastando de seus ofícios por causa da condição, que destrói a capacidade de expressão
O belo, complexo e ainda não completamente compreendido sistema da linguagem garante aos seres humanos a característica única entre os animais de ter à disposição um recurso de expressão plena. É por meio dele que a humanidade se relaciona, evolui e cria narrativas esplêndidas como a Ilíada, de Homero, ou Os Lusíadas, de Camões. Máculas de qualquer extensão nessa ferramenta condenam os indivíduos a um isolamento em si mesmo forçado, dramático e exasperante. É mais ou menos como nos pesadelos em que se tenta gritar, porém a voz não sai. O pensamento está lá, preservado, mas sua tradução verbal, não. Na medicina, essa condição tem o nome de afasia, palavra com raiz no grego aphasía, a dificuldade para falar.
Nas últimas semanas, o quadro chamou a atenção com a divulgação de que duas personalidades admiradas estão se afastando de seus ofícios por causa dele. O primeiro a informar o recolhimento foi o ator Bruce Willis, de 67 anos. O astro americano vencedor de dois prêmios Emmy e um Globo de Ouro anunciou que se retirava dos sets de filmagem depois que episódios consecutivos de esquecimento e confusão nas falas o vinham acometendo. Depois, foi a vez de Angeli, o genial cartunista brasileiro de 65 anos criador de personagens como o Meia Oito e a Rê Bordosa. Os comunicados foram feitos oito meses após a morte da promoter Alicinha Cavalcanti, em São Paulo, aos 58 anos, afetada pela perda da habilidade.
Os três manifestaram o tipo mais devastador da condição, a afasia progressiva primária, caracterizada pelo desaparecimento gradual e irreversível da competência de se expressar. Além dele, existem os episódios temporários. Ambos são causados por perturbações no sistema cerebral responsável pelo processamento de palavras, frases, mediação de verbos e nomes a partir de associações entre informações armazenadas na memória. Seu funcionamento é incrivelmente elaborado, desenvolvido ao longo da evolução para tornar cada um de nós apto a comunicar pensamentos de forma compreensível.
A origem dos transtornos nessa afinada cadeia difere de acordo com o gênero da afasia. A transitória é resultado de eventos como traumatismo craniano, tumores cerebrais ou acidente vascular cerebral (AVC), este último responsável por até 40% dos casos. Eles provocam a morte de neurônios que integram o sistema, o que leva à interrupção da transmissão das informações entre essas células nervosas. Daí o aparecimento quase sempre súbito de sintomas como erros ao elaborar frases, trocas de sentido das palavras e dificuldades para entender diálogos ou textos. Graças à capacidade que o cérebro tem de mobilizar outros neurônios para restituir funções que deixaram de ser cumpridas — fenômeno chamado de neuroplasticidade —, esse tipo de afasia geralmente é reversível. “Pode demorar, mas o poder da expressão é resgatado por meio de exercícios fonoaudiológicos que estimulam outros circuitos nervosos a desempenhar o trabalho que deixou de ser feito”, explica Maria Isabel D’Ávila Freitas, da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia.
No caso da afasia primária progressiva, no entanto, isso não acontece. A razão está no fato de a condição ser provocada por um processo degenerativo, associado a quadros de demência, contra o qual a ciência ainda não encontrou solução. Sabe-se que há influência de fatores genéticos na morte dos neurônios e que, em algumas variações, eles desaparecem porque são cobertos por proteínas, em um mecanismo semelhante ao que ocorre na doença de Alzheimer. Como é impossível interromper a evolução dessa marcha — ao menos até o momento —, o foco é preservar o que resta, também com ajuda da fonoaudiologia.
Embora não existam levantamentos extensos sobre a incidência do problema, os especialistas no assunto observam aumento no relato de casos dos dois tipos de afasia. Ele está ligado principalmente ao envelhecimento populacional, fato que eleva a parcela das pessoas mais vulneráveis a apresentar sintomas do gênero. O AVC, por exemplo, responsável pela maior parte dos episódios reversíveis, é mais frequente em indivíduos com idade acima dos 60 anos. No Brasil, a concentração de pessoas nessa faixa etária já é de 17,9% da população, equivalendo a 37,7 milhões de habitantes. Dentro de oito anos, elas serão mais numerosas do que o total de crianças e adolescentes de zero a 14 anos. “Esse crescimento sinaliza que haverá elevação na quantidade de pacientes que apresentarão ocorrências de afasia temporária”, disse a VEJA Swathi Kiran, professora da Universidade de Boston, nos Estados Unidos. No que diz respeito aos quadros progressivos, a ligação com o envelhecimento também é natural e inexorável, uma vez que os processos de degeneração neuronal se aceleram nas últimas décadas de vida.
Os cientistas estão atentos ao impacto que a transformação demográfica trará para a saúde. Por isso, encontrar recursos para preservar as funções cerebrais está entre as prioridades do que deve ser perseguido daqui para a frente. E, apesar de a afasia ser desafiadora pela complexidade que a envolve, notam-se avanços, como no diagnóstico, hoje facilitado por exames de imagem mais reveladores. Para o futuro, fica a esperança de tratamentos que impeçam a destruição dos neurônios e a consequente morte do fabuloso e fascinante poder humano de se comunicar.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787