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Cilene Pereira: a vida a ser vivida

Movida a curiosidade, alimentada por desafios, incansável e detalhista, a editora de Saúde de VEJA foi uma das mais respeitadas jornalistas de sua área

Por Redação Atualizado em 4 jun 2024, 10h39 - Publicado em 17 fev 2023, 06h00

A editora de Saúde de VEJA, Cilene Pereira, uma das mais respeitadas jornalistas de sua área de atuação, foi sempre muito discreta. Por meio de seu trabalho, e das relações sociais que costurou, contudo, era permanente inspiração para os colegas de trabalho — e para quem a lia. O rigor de Cilene ajudou a fundar um modo de acompanhar as notícias que brotavam dos institutos de pesquisa, dos hospitais e dos consultórios médicos. Em 2018, ela fez uma reportagem para a revista IstoÉ em torno do tabu da doação de órgãos no Brasil, país em que 40% das famílias recusam o oferecimento. Encerrou o texto — sempre fluente e cientificamente preciso, palatável para os leigos e surpreendente para os doutores — com uma revelação pública. Ela mesma era uma transplantada. Cilene era portadora de polineuropatia amiloidótica familiar (PAF), doença neurodegenerativa rara de origem genética que pode provocar danos como problemas cardíacos e perda progressiva de movimentos.

Um ano e oito meses depois dos primeiros sintomas, houve o diagnóstico e a recomendação do transplante. Após três meses de espera, foi levada à mesa de cirurgia. Por uma peculiaridade da doença, seu fígado não servia para ela, mas serviria para outro paciente. Passou, então, pelo que os especialistas chamam de “transplante dominó”. Na noite em que recebeu um fígado novo, Cilene doou o seu a uma outra pessoa. As últimas linhas daquele relato íntimo são um resumo do modo como ela tocava o cotidiano e olhava para os outros. “Como é de praxe, não sei quem foi meu doador. E também não sei quem recebeu meu fígado. Na verdade, isso não importa. O que importa é que, por causa de uma doação de órgão, eu sigo com minha vida, com as alegrias, os fracassos, os encantamentos, as angústias e as esperanças que fazem dela algo tão fascinante e desafiador. E torço para que a pessoa que recebeu meu fígado esteja, como eu, feliz e pronta para a vida que há para ser vivida.”

Na vida que há para ser vivida, Cilene sempre soube equilibrar carinho com inteligência. Em 2016, ela e o marido, o advogado Itamar Ciochetti, receberam uma carta escrita a mão por uma das três filhas, Maria Clara, que já dava sinais de se identificar com outro gênero. “Depois de 15 anos e 9 meses, vocês estão ganhando um menino”, escreveu. A própria Cilene daria um depoimento para o jornal O Globo a respeito daquela passagem. “O Nicolas se colocou como trans de forma muito bonita. A gente lembra até hoje. Eu estava chegando do trabalho à noite e ele disse que tinha uma correspondência para mim. Ainda brinquei: ‘Não é boleto não, não é?’. Depois que li a carta, fui imediatamente ao quarto dele. Fiquei muito feliz, porque eu via que ele sofria. O período até se encontrar é doloroso, não só para ele, mas para nós, que estamos do lado. Para mim, foi um alívio. Disse que estava muito feliz e orgulhosa da coragem que ele teve ao dizer que queria viver como um menino.” Nicolas é irmão de Cecília e Catarina.

Movida a curiosidade, alimentada por desafios, incansável e detalhista, no breve período em que esteve do “outro lado do balcão”, como diz o jargão da imprensa, ela trabalhou na asses­soria Jeffrey Group, lotada dentro do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, centro de excelência e conhecimento. Silenciosamente, teve papel fundamental na lida contra o negacionismo do governo de Jair Bolsonaro depois da eclosão da pandemia de Covid-19, em março de 2020. Passava as informações corretas, facilitava as entrevistas, iluminava as dúvidas. “A bandeira da equidade em saúde teve nela, exímia profissional, uma de suas maiores defensoras”, diz Sidney Klajner, presidente da sociedade beneficente que controla o Einstein. Cilene teve um AVC hemorrágico na semana passada. Morreu em 13 de fevereiro, aos 57 anos, em São Paulo.

Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829

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