Cientistas chineses anunciam feito inédito que revoluciona o transplante de fígado
A inovação arma o mais novo capítulo de uma busca antiga que, mais recentemente, gerou progressos

Em 30 de agosto de 1985, Maria Regina Mascarenhas entrou para os anais da medicina no país. E virou uma das personagens principais de uma história exclusiva que ganhou a capa de VEJA. A estudante se tornou a primeira paciente brasileira a receber um transplante de fígado, na “mais longa, complexa e ousada” cirurgia realizada nestas terras até então, como descreveu a reportagem da revista há quarenta anos. Foi, sem dúvida, um marco, resultado de um longo e delicado processo. Pouco menos de uma década antes da operação, os médicos Silvano Raia e Sérgio Mies — os outros protagonistas desse enredo — foram aos EUA aprender a arte do transplante hepático com o pioneiro na área, o americano Thomas Starzl. A técnica foi exaustivamente treinada em 450 porcos e, após semanas de espera pelo órgão compatível com um dos quarenta candidatos, a cirurgia de mais de 23 horas aconteceu em São Paulo.
Maria, que antes tinha esperança de viver apenas algumas semanas, foi eleita pelo destino (e pela ciência) e pôde voltar a sonhar. “Quero agora terminar o curso e ser uma advogada”, disse a VEJA, com um fígado novo e funcional. Infelizmente, ela morreria um ano e três meses depois, vitimada pelo mesmo câncer que a levara à cirurgia. Mas isso não tirou o brilho do procedimento nem apagou seu nome de uma história que, na última década, salvou 20 000 vidas somente no Brasil. E essa trajetória, abrilhantada por nomes como Raia e Mies, deve passar agora por uma revolução, pavimentada pelos avanços da biologia molecular.
A novidade vem do outro lado do mundo, na China, onde uma equipe comandada pelos pesquisadores Lin Wang e Deng-Ke Pan conseguiu, de forma inédita, transplantar um fígado suíno geneticamente modificado em um ser humano. Por enquanto, a cirurgia ainda está em fase experimental e acabou sendo realizada em um indivíduo com morte cerebral, mas ficou atestado que é viável: o órgão não foi rejeitado ao longo dos dez dias em que recebeu o sangue de seu novo dono e produziu albumina e bilirrubina, duas substâncias essenciais para o bom funcionamento do corpo. “É uma grande conquista”, disse Wang. “A cirurgia foi muito bem-sucedida.”
A inovação levada a cabo pelos chineses arma o mais novo capítulo de uma busca antiga que, mais recentemente, gerou progressos para o transplante renal e cardíaco. O fato é que, ao menos desde o século XVII, há quem tente utilizar órgãos animais, passíveis de produção em massa, para repor suas contrapartes humanas e salvar pessoas. Persistia, contudo, uma enorme dificuldade: a rejeição ao material transplantado. Isso acontece porque cada organismo, humano ou animal, produz substâncias que sinalizam ao sistema imunológico que aquelas células são ou não seguras. Ao receber o órgão alheio, o corpo não reconhece o “invasor” e luta para eliminá-lo.
Quando a troca é feita entre humanos, é possível procurar indivíduos compatíveis, mas entre espécies diferentes isso era praticamente inimaginável. E o fígado ainda impõe uma dificuldade extra. A principal função do coração e do rim é, respectivamente, bombear e filtrar o sangue, o que faz com que a rejeição ao tecido seja o principal problema a ser contornado. “Já o fígado produz mais de mil substâncias que podem ser repelidas pelo corpo”, afirmou Raia, ainda na ativa aos 94 anos, a VEJA.
E é justamente por isso que a obra dos especialistas chineses foi tão celebrada. Lançando mão da principal técnica de edição genética, eles alteraram o DNA de porcos criados para essa finalidade a fim de neutralizar as moléculas que induziriam a rejeição no corpo humano. E ainda foram além: adicionaram no genoma dos animais a receita para suas células produzirem duas substâncias humanas que controlam a imunidade e bloqueiam a coagulação excessiva — tudo para ampliar as chances de sucesso do transplante. De fato, funcionou!

É uma exitosa prova de conceito que pode viabilizar uma nova era no campo dos transplantes, que ainda padece com a falta de doadores. Em 2022, cientistas americanos removeram os mesmos genes do experimento chinês para conseguir transplantar o primeiro coração de porco geneticamente modificado em um humano, que sobreviveu com ele por dois meses. Atualmente, ao menos duas pessoas já vivem com rins suínos que passaram pelo mesmo tipo de engenharia biológica.
Mas por que sempre os porcos? A resposta está na afinidade fisiológica… e na praticidade. Além de crescer rapidamente e ser criado em larga escala, o animal tem uma anatomia particularmente parecida com a nossa, o que facilita o jogo de encaixes na operação em si. Eis o admirável mundo dos xenotransplantes, como a técnica foi batizada. “A grande vantagem desse método é que podemos continuar modificando os porcos doadores para que seus órgãos sejam ainda mais compatíveis, a ponto de, um dia, eles se tornarem equivalentes ou até superiores aos transplantes convencionais”, afirmou a VEJA o imunologista Peter Cowan, professor da Universidade de Melbourne, na Austrália.
Claro que, até lá, há um longo caminho a percorrer. Por enquanto, são necessários estudos clínicos em grupos maiores, que permitirão constatar se o fígado modificado funcionará adequadamente por mais de dez dias (limite estabelecido pela família do receptor chinês), se só essas transformações genéticas serão suficientes e se o corpo dos pacientes se adaptará aos medicamentos imunossupressores — que continuam sendo necessários, afinal, ainda se trata de um órgão animal, com componentes que podem gerar a chamada rejeição crônica, que danifica o órgão a longo prazo. Outro fator exige extrema cautela. Experimentos em animais mostraram que os órgãos podem estar contaminados com patógenos específicos daquela espécie. Embora a transmissão para humanos seja pouco provável, os xenotransplantes podem elevar o risco de propagação de novas infecções, caso venham a ser realizados em massa. “O risco não pode ser descartado, mas os porcos são mantidos em ambientes muito limpos e os receptores são monitorados de perto para evitar esse tipo de coisa”, esclarece Cowan.

Em que pesem as adversidades, há enorme expectativa em relação a esses avanços. Embora a substituição de um órgão só seja feita quando não há alternativa no tratamento, milhares de pessoas esperam por uma solução do gênero. E, insista-se, não há doadores suficientes para suprir a demanda atual. Só no Brasil, mais de 42 000 pessoas aguardam por um rim e 2 300 por um fígado. Tal fila de espera é raramente reduzida. E a ausência do tratamento resultou na morte do equivalente a sete pessoas por dia apenas em 2022.
Nessa corrida, contudo, nosso país poderá exercer certo protagonismo. Em 2024, foi inaugurado na Universidade de São Paulo (USP) um centro voltado apenas para a pesquisa com xenotransplantes. Chamado de XenoBR, o projeto é coordenado por ninguém menos que Silvano Raia, em parceria com a geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco da USP. Por lá, eles já conseguiram produzir embriões suínos sem os genes da rejeição e, recentemente, anunciaram o desenvolvimento de um método capaz de produzir porcos estéreis, completamente livres de patógenos, algo essencial para aprimorar a segurança dos transplantes entre espécies diferentes. O próximo passo agora será unir as duas técnicas. “E estamos bem adiantados no processo”, revela Raia, com o entusiasmo e a certeza de que, muito em breve, poderá voltar às páginas da história da medicina.
Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938