Câncer: a saga de uma mãe para salvar seu filho
"É o meu grande milagre", diz Monique Nogueira, que lutou para conseguir tratar o pequeno Levy, diagnosticado com um câncer raro aos 3 meses de vida
Quando seu segundo filho tinha apenas três meses de vida, a cardiologista Monique Nogueira, de 36 anos, viu sua vida virar de cabeça para baixo. O pequeno Levy foi diagnosticado com um tipo raro de câncer. A dimensão do tumor, localizado na cabeça, entre o olho e o cérebro, impedia a cirurgia. A quimioterapia, além de causar complicações gravíssimas, não foi capaz de reduzir o tumor.
A única esperança da família era o MD Anderson, o melhor centro oncológico do mundo, nos Estados Unidos. Mas o custo do tratamento ultrapassava 2 milhões de reais. Em depoimento a VEJA, Monique conta toda a saga da família na tentativa de salvar o filho.
“Quando eu engravidei do Levy eu já tinha um filho de três anos, o Theo. A gestação foi planejada e muito tranquila, com crescimento e desenvolvimento normal do bebê. Nos primeiros 20 dias depois do parto, ele chorava muito a noite. Como já tínhamos outro filho, achávamos que era um choro normal de recém-nascido. Quando ele estava com dois meses e meio, nós percebemos uma espécie de caroço ao lado do olho esquerdo. Exceto que aquilo não tinha consistência de caroço, parecia uma picada de mosquito que tinha inchado um pouco. Era algo muito sutil. Decidi observar para ver o que acontecia. Depois de dois dias, o caroço aumentou e decidimos ir à pediatra.
A médica, que era minha amiga de faculdade, pediu um ultrassom e indicou uma colega especialista nessa região para realiza-lo. Fizemos o ultrassom depois de três dias, no aniversário de três meses do Levy. No período entre a consulta e o exame, aquilo que estava crescendo bem devagarzinho, tomou uma proporção muito maior. No início do exame, eu disse à radiologista que ela poderia me dizer de forma sincera o que estava vendo porque eu era médica e entendia. Ela olhou para mim e falou ‘Mãe, eu vou falar para você como eu gostaria que falassem para mim. A massa é muito grande. Não dá para medir pelo ultrassom. Provavelmente vai precisar fazer uma ressonância magnética. Mas já dá para ver que é muito vascularizado’.
Naquela hora, meu chão abriu e eu comecei a chorar. Minha mãe e a babá do Levy estavam comigo e não entenderam nada. Perguntaram porque eu estava chorando se a médica tinha dito que precisava fazer outro exame. Eu sabia que aquelas características indicavam malignidade, mas não queria dizer para ninguém antes da confirmação. Graças à ajuda dessa médica, conseguimos marcar o exame para cinco dias depois. Entre o ultrassom e a ressonância, o tumor cresceu muito, a ponto do olho esquerdo dele saltar um pouco.
Como nesses casos, tempo é vida, já deixei marcada a consulta com um neurocirurgião para o dia seguinte à ressonância. A pediatra do Levy, que era minha amiga de faculdade, recomendou ir ao oncologista antes da ressonância. Eu achei precipitado. Estava na fase de negação, não queria acreditar que podia ser câncer mesmo. Mas marquei. A médica era muito otimista e tentou deixar a gente o mais tranquilo possível com a situação. Isso ajudou bastante, porque a gente nunca imagina que um filho vai passar por uma dificuldade tão grande de saúde e ainda mais tão novo. No dia da ressonância, meu pai, que também é médico, foi comigo. Quando eu vi o tamanho da imagem que estava na minha frente, eu não conseguia acreditar. Pelas características, parecia um sarcoma, que é um tumor maligno.
No dia seguinte, o neurologista disse que o tumor era muito grande e não dava para operar. Era necessário começar a quimioterapia o quanto antes. Foi uma corrida contra o tempo. Era feriado em Brasília, onde moramos, e mesmo assim a equipe médica fez os exames necessários e no mesmo dia já implantou o cateter. Só saímos do hospital depois de cinco dias e quando ele já tinha feito a primeira sessão do tratamento.
Meu outro filho, que também era uma criança, ficou em casa. Isso mexe com todo o núcleo familiar. Então tem a luta contra a doença e a do tratamento, porque o tratamento quimioterápico é muito puxado. O hospital ficava a 15 minutos da minha casa e a gente fez todo um plano para eu poder almoçar com o meu outro filho sem deixar o Levy muito tempo. Como ele só mamava, eu não podia ficar muito tempo longe dele. O Levy teve várias complicações graves devido à quimio. A primeira foi uma infeção generalizada muito séria, com alto risco de morte. Naquele dia, eu orei como nunca tinha feito antes e, como para Deus nada é impossível, ele foi melhorando. Recomeçamos a quimio logo em seguida porque ele não podia ficar sem. Conseguimos passar o natal e o réveillon em casa, o que foi ótimo, mas no dia 3 de janeiro, ele teve outra complicação, ainda mais rara e grave.
A médica me disse: ‘seu filho tem uma doença rara, com uma complicação rara, que a gente nem sabe tratar porque é tão raro que a gente não tem prática clínica disso’. Eu entrei em desespero. O fígado dele estava enorme e ele estava com tanta dor que chegaram a dar morfina. Os médicos disseram que o risco de morte era de 80% e que era difícil ele conseguir sair desse quadro. Contra todas as expectativas, o Levy melhorou apenas com o tratamento paliativo. Nessa hora eu só pensei: ‘é o meu grande milagre’. E eu sabia que dali para frente, as coisas dariam certo.
Ele não pôde fazer quimio por três semanas, até o fígado se recuperar. Depois disso, a médica disse que não tinha coragem de continuar com esse tratamento. Os exames mostraram que o tumor tinha reduzido apenas 37%. Se fosse a terapia correta, deveria ter diminuído mais. A nova quimio tinha um esquema muito mais tranquilo e o Levy tolerou bem. Por outro lado, o tumor não reduziu mais nada. Mesmo sem complicações graves, foi um período muito difícil. Ele estava sempre com a imunidade baixa e não podia sair para lugar nenhum. A gente passava o mês inteiro em casa e só saia um dia para ir a igreja. Ficamos assim por seis meses. Quando a terceira ressonância mostrou que o tumor não tinha regredido, eu falei para a médica que se continuássemos assim, ele ira morrer.
Ela disse que minha única opção seria ir para Houston [nos Estados Unidos], no MD Anderson, que é o melhor hospital oncológico do mundo. Antes de tomar alguma decisão, ela recomendou que eu consultasse outro especialista, que me disse a mesma coisa. Eu não tive dúvida. Eu tinha que ir para lá. Conversei com meu marido e decidimos que a família toda iria: eu, meu marido, o Levy, o Theo e minha mãe também foi. Enviei um e-mail para o hospital explicando o caso do Levy. A equipe do hospital pediu os exames traduzidos para o inglês e disse que eles analisariam se aceitariam avaliar o Levy. Esperei sete dias pela resposta.
O Levy foi aceito, mas só a avaliação inicial custaria mais de 150 000 reais. A estimativa do preço do tratamento ultrapassava 2 milhões de reais. Por mais que nós tivéssemos uma boa condição econômica, eu não tinha esse dinheiro. Nesse momento, eu e meu marido, que sempre fomos muito reservados, decidimos criar uma vakinha e divulgar o caso. Era a única chance de salvar nosso filho. Gravei um vídeo, publiquei no Facebook e eu não esperava que teria tanta repercussão. Gente do Brasil inteiro começou a me ligar. Vendemos o carro e outras coisas que tínhamos e, em 20 dias, conseguimos levantar o dinheiro para viajar e iniciar o diagnóstico. Em Houston, vários brasileiros nos ajudaram com hospedagem, transporte e apoio. A gente começa a olhar para o lado e vê que não precisa de muito para fazer a diferença na vida de alguém. Porque a ajuda dessas pessoas foi fundamental para conseguirmos tratar o Levy.
No MD Anderson, todos os médicos olharam para o Levy com um olhar muito otimista. Ele foi diagnosticado com fibrosarcoma infantil, um câncer raro. Disseram que o tratamento feito no Brasil tinha sido correto, mas agora era necessário uma nova estratégia. Um exame molecular, que já tínhamos feito quando ele estava no Brasil, mas que lá não tinha utilidade nenhuma, mostrou que o câncer do Levy tinha uma mutação específica. Um medicamento oral, ainda em estudo clínico, atuava justamente contra essa mutação.
Começo a busca por um estudo que o Levy pudesse entrar. Ele tinha 11 meses de idade e todo os estudos abertos só aceitavam crianças a partir de um ano. Incrivelmente, os médicos descobriram um estudo em Dallas, que fica do lado de Houston, que era para bebês com menos de um ano. Fiquei super feliz e perguntei como funcionava o estudo. Os médicos explicaram que o Levy não pagaria a medicação, mas todos os exames e consultas necessários deveriam ser pagos por nós. Era muito dinheiro. Só a ressonância magnética custava 11 000 dólares. Nós não conseguiríamos pagar aquilo.
Então me informaram que o laboratório que estava conduzindo o estudo queria muito que o Levy participasse porque era difícil encontrar crianças que preenchessem os critérios de recrutamento e ele se enquadrava em todos. Eles arcariam com todos os custos, desde exames e consultas até carro e hospedagem. Ele começou o tratamento e depois de um mês, o tumor diminuiu 30%. Depois do terceiro mês, a redução foi de 70%. A medicação é um xarope oral, que ele toma duas vezes por dia até hoje, sem nenhum efeito colateral. Eu chamo de xarope milagroso. O Levy nunca mais fez quimio nem outro tratamento e tem uma vida normal e feliz. Eu me sinto muito privilegiada de poder dar essa qualidade de vida para o meu filho.
Nós voltamos a morar no Brasil e vamos para os Estados Unidos uma vez por mês para fazer exames e buscar o remédio. Ele ainda está no estudo e o laboratório continua arcando com esses gastos. O tumor ainda está lá, mas é bem pequeno: tem 2 centímetros. Antes tinha 6 centímetros. Para ele ficar curado, é preciso operar e retirar o tumor. Estamos tentando levantar o valor da cirurgia, que é de 160.000 dólares (cerca de 670.000 reais na cotação atual), mas ainda temos tempo. Como ele é muito novo, a cirurgia seria bastante complicada. Então, os médicos recomendaram esperar alguns anos, até que ele esteja mais velho. Para mim foi e e estão sendo uma grande lição de vida. Hoje eu consigo ver as coisas muito diferentes e dar valor a coisas que a gente não dá importância, como ir para o parque com a família ou fazer coisas bobas do dia a dia que a gente nem percebe, mas quando não pode fazer, sente falta. Eu acredito no milagre porque eu já vivi o milagre.”
Aprovado pela Anvisa
O medicamento que salvou Levy chama larotrectinibe (nome comercial: Vitrakvi) e foi aprovado em julho pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento de tumores sólidos localmente avançados ou metastáticos que tenham fusão do gene NTRK.
Esse é o primeiro tratamento aprovado no país para todo e qualquer tumor sólido com uma mutação específica, conhecida como fusão do gene NTRK. O pembrolizumabe (nome comercial: Keytruda), da MSD, foi a primeira medicação do mundo aprovada sob a mesma lógica. Mas ele só tem essa indicação agnóstica – quando classificação e tratamento ocorrem de acordo com uma característica molecular específica e não pela localização do tumor – nos Estados Unidos. Aqui, o larotrectinibe, da Bayer, é o primeiro.
Mecanismo de ação
O larotrectinibe é um medicamento oral que bloqueia a atividade deflagrada a partir da fusão do gene TRK e desliga a sinalização que origina o câncer. Esse tipo de tumor é resultado de uma fusão anormal de dois genes, um deles NTRK e outro não relacionado, que leva a criação de uma proteína de fusão TRK. Essas proteínas são consideradas gatilhos para o surgimento, crescimento e sobrevida do tumor.
Esse tipo de mutação é considerada rara. Aparece em cerca de 1% dos cânceres, mas é considerada rara, mas ocorre em mais de 20 tipos de tumores, incluindo fibrossarcoma infantil, pulmão, colorretal, tireoide e sarcomas. Estudos clínicos mostraram que a maioria dos pacientes tratados com larotrectinibe tiveram os seus tumores reduzidos, com uma taxa de resposta de 75%.
Por ter uma ação específica é uma medicação menos tóxica que a quimioterapia. Os principais efeitos colaterais são fadiga, náusea, tosse e vômitos.
O Brasil é o segundo país do mundo a aprovar esse tratamento, atrás apenas dos EUA, que aprovou o medicamento em novembro de 2018. Por lá, o custo mensal do medicamento é de cerca de 30.000 dólares, o equivalente a 120.000 reais. No Brasil, o medicamento só pode ser comercializado após a aprovação da Câmara de Regulamentação de Mercado de Medicamentos (CMED)do preço máximo ao consumidor. A expectativa da Bayer é que o tratamento esteja disponível no país até o final do ano.