Arquitetos criam jardim em cemitério para o luto de quem sofre aborto
Inspirado em uma tradição budista, o projeto canadense oferece aos pais um local dedicado à memória
O jardim, chamado de Little Spirits Garden (“Jardim dos Pequenos Espíritos”, em tradução livre), foi projetado pelos arquitetos paisagistas canadenses Bill Pechet e Joseph Daly. O projeto é inspirado em uma tradição budista conhecida como Jizo – o costume de criar uma pequena estátua em homenagem a uma criança morta. No Japão, onde Pechet viveu durante dois anos, as estátuas ficam em templos, que contam com cemitérios em anexo dedicados a elas. Durante as festividades, os japoneses costumam enfeitá-las com acessórios.
“Achei tão inspirador, tão terno e bonito ver essas criações. Fiquei impressionado com o senso de grandeza quando eram exibidas juntas em ocasiões especiais, mostrando uma perda coletiva na sociedade”, explicou ele à BBC. Inspirado pela tradição, o arquiteto decidiu criar uma versão que abraçasse a pluralidade do Canadá. Para Pechet, o espaço precisaria ser um espaço ecumênico e as estátuas teriam que dar lugar a um símbolo universal capaz de abraçar todas as crenças. A sua escolha foi uma casa. “A casa é um símbolo universal de proteção e não é sectário”.
Para verificar aceitação da ideia, ele consultou pais que perderam filhos, terapeutas e líderes religiosos. Mesmo com alguma resistência, especialmente dos cristãos, Pechet decidiu seguir em frente, pois queria oferecer esse espaço de luto para as pessoas. No fim, o projeto foi abraçado por todos.
O jardim
O jardim foi inaugurado em 2012 e está localizado em um terreno no Royal Oak Burial Park, um cemitério de Victoria, em British Columbia. As casas, chamadas de “casas dos espíritos”, são feitas de concreto pré-moldado, com pequenos talhos, para que possam crescer musgos sobre ele. Além disso, há uma pequena abertura no interior que simboliza o ventre materno. Essas casas ficam em cima de pedestais compridos de concreto e podem ser personalizadas pelas famílias com decoração de sua escolha ou podem ser simples, apenas com uma epígrafe.
Para casos em que a criança é cremada, as famílias têm a opção de espalhar as cinzas em uma área especial ou depositadas em um ossário. Independente da cremação, todos os pais recebem uma casa para cada criança perdida. Ao todo, o jardim tem cerca de 400, mas há espaço para até 3.000. Todo o serviço é oferecido gratuitamente graças às doações que financiam o projeto.
“Tenho muitos ‘imóveis'”
Debbie Balino é uma das mães que frequentam o Little Spirits Garden. Ela conheceu o jardim depois de sofrer o segundo aborto espontâneo. A informação veio de um médico – um dos muitos que intermediam o contato de pais em luto com a equipe que administra o jardim. Essa recomendação acontece quando o profissional de saúde acredita que conhecer o espaço vá fazer bem à família.
Para Debbie, o espaço é especial. “É muito difícil quando você tem um aborto espontâneo e não tem um corpo, porque não existe um objeto físico. O Little Spirits Garden oferece esse objeto para você, que é essa casa”, disse à BBC. Apesar de uma primeira gravidez bem sucedida, Debbie teve uma sequência de nove abortos espontâneos ao longo de cinco anos.
O aborto espontâneo é mais comum do que as pessoas imaginam. No Brasil, por exemplo, de 15% a 20% das gestações podem ser afetadas pelo problema até a 22ª semana. No Canadá, cerca de 3.000 mulheres têm bebês natimortos a cada ano. Mas o caso de Debbie – com nove seguidos – é uma exceção, por isso, os médicos não entendiam porque ela não conseguia levar as gestações adiante.
No primeiro aborto espontâneo, ela ainda não conhecia o jardim, então, sem saber o que fazer, decidiu deixar a primeira filha perdida no hospital. “Elas [as crianças] são novas demais para um funeral, mas viveram tempo suficiente para ignorarmos que existiram. Não sabíamos onde colocar a Victoria, então a deixamos no hospital. Eles se referiram a ela como ‘resíduo biológico’. Isso partiu meu coração”, contou.
Ao descobrir o jardim, ela garantiu uma casa para o segundo filho perdido, William, e também para Victoria e todos os outros que ela perdeu. Para Debbie, ter o Little Spirits Garden é uma forma de validação da sua perda. O” que eu sinto é uma sensação de validação – a sensação de que alguém pode ver o que eu sinto. Você pode olhar para isso e dizer que é a casa do espírito da sua filha. Foi tão bom ser capaz de dar um lar para ela. Tenho muitos ‘imóveis’ neste jardim”, explicou.
O ‘bebê arco-íris’
Debbie visita o local regularmente e leva junto a primeira filha, hoje com oito anos. Segundo ela, a menina a acompanha desde os três anos de idade e interage com as casas dos irmãos e irmãs. “Ela passeava, dançava, brincava, conversava com os irmãos e irmãs, trazia ovos de Páscoa, cantava para eles. ‘Comecei a ir para a escola’, ‘Usei essa fantasia no Halloween’, contava ela a eles. Ela fala com as casas”, contou.
Outra pessoa que a acompanha nas visitas é o segundo filho, que ela conseguiu gerar depois dos nove abortos espontâneos. A gestação foi possível através de uma doação de óvulos – feita por uma mulher que ela conheceu através de uma rede de apoio para pessoas que perderam filhos em decorrência de aborto espontâneo. “Geramos um menino há um ano”, comentou. Ela o chama de “bebê arco-íris” – termo usado para descrever crianças nascidas de mãe que sofreu com o problema gestacional anteriormente.
Um desfecho
Falar sobre o aborto espontâneo ainda é um tabu, inclusive para as mulheres que passam pela situação. No caso de Susan McMullen, que trabalha no jardim há cinco anos, a realidade mudou ao acompanhar as pessoas que visitam o local. Para ela, o Little Spirits Garden oferece uma oportunidade de desfecho para as famílias. “Uma mulher que veio recentemente tinha sofrido uma perda em 1955. Ela perguntou se ainda poderia ter uma casa de espírito. E é claro que ela pode”, contou à BBC.
O trabalho também permitiu que ela sentisse luto pelas próprias perdas. Susan mantêm duas casas no jardim: uma para a própria perda, que aconteceu em 1991, e uma para a mãe, que sofreu um aborto espontâneo no início dos anos 1960, antes que Susan nascesse. O gesto foi a forma que encontrou de oferecer à mãe o que ela não recebeu na época: solidariedade.
“A mentalidade era ‘isso acontece’. Você segue em frente. Era algo como ‘levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’. Se você perdeu um bebê, havia uma razão para isso. Mas a nova geração se sente empoderada para compartilhar o luto”, disse.