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Aprovação de projeto de lei amplia debate sobre Cannabis medicinal no país

Há longo caminho a ser percorrido antes que os remédios estejam disponíveis sem que seja preciso pagar altos custos de importação ou entrar na Justiça

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h46 - Publicado em 10 fev 2023, 06h00

Nestes tempos de sensibilidades à flor da pele, preconceitos de todos os tipos e estigmas difíceis de quebrar, não custa ir logo avisando: a maconha é, sob diversos aspectos, uma planta extraordinária. Domesticada na China provavelmente há 12 000 anos, ela tem algo como 480 compostos químicos. Até hoje, contudo, a ciência não tem ideia completa e exata a respeito dos efeitos e eventuais utilidades de boa parte deles. No entanto, dois desses elementos tiveram seu uso consagrado ao longo da história. O THC, ou tetra-hidrocanabinol, tem propriedades alucinógenas que lhe conferiram reconhecimento em qualquer canto do mundo. É ele que produz o famoso “barato”, que fascina rebeldes — e até não rebeldes, diga-se — de todas as idades. O segundo componente químico, aquele que estará no foco desta reportagem, é diferente. Trata-se do CBD, abreviação para canabidiol, palavra que provoca arrepios nas mentes mais ressabiadas. Pois bem: o CBD, e eis aqui um ponto fundamental, não provoca efeitos alucinógenos. Na verdade, ele sugere algo ainda mais surpreendente: ostenta propriedades medicinais capazes de combater diversos males que afligem a humanidade.

Isso é sabido há um bom tempo, mas o que está em curso agora é algo bastante diferente. A ciência, enfim, tem elementos suficientes para comprovar a eficácia do canabidiol em inúmeros tratamentos, a comunidade médica começa a se render aos remédios concebidos a partir da Cannabis e um vigoroso mercado formado por laboratórios, gigantes farmacêuticas e startups dá novo impulso ao setor. O Brasil está no centro dessa transformação.

arte maconha

A história da Cannabis medicinal no país pode ser contada a partir de alguns marcos decisivos. Das pesquisas pioneiras do médico Elisaldo Carlini (1930-2020), responsável por comprovar os benefícios do canabidiol para controle de crises convulsivas ainda na década de 80, à publicação das primeiras normas para importação de medicamentos à base de canabidiol pela Anvisa, em 2015, a planta vem conquistando seu espaço. Um projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo em dezembro de 2022 e sancionado pelo governador do estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), em 31 de janeiro deste ano, é o mais recente capítulo na história. E provavelmente o mais eficaz para impulsionar o uso da Cannabis medicinal. A legislação estabelece a política de fornecimento gratuito desses medicamentos nas unidades de saúde pública e privadas conveniadas ao SUS. Não deixa de ser irônico: um político à direita no espectro ideológico sancionou um projeto até então ignorado por colegas mais ao centro e à esquerda.

Há longo caminho a ser percorrido antes que os remédios estejam disponíveis sem que seja preciso pagar altos custos de importação ou entrar na Justiça para exigir que o Estado financie o tratamento. A regulamentação ainda depende de ajustes, e o sucesso da aplicação da lei depende de sua robustez. Não se sabe quais condições serão contempladas, nem quais os produtos aprovados pela Anvisa serão fornecidos. A decisão, contudo, já teve efeito imediato e inequívoco: trouxe a Cannabis medicinal, novamente, para o centro do debate público. “É um ato simbólico, muito relevante para o mercado, porque se trata da maior economia do país”, afirma Tarso Araújo, diretor-executivo da BRCann, associação de empresas do setor de Cannabis medicinal no Brasil. “Ainda mais quando falamos de uma planta ainda estigmatizada.”

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BOM NEGÓCIO - Fábrica da GW: maior produtora de Cannabis medicinal do planeta -
BOM NEGÓCIO – Fábrica da GW: maior produtora de Cannabis medicinal do planeta – (Jason Alden/Bloomberg/Getty Images)

O estigma vem do desconhecimento. A maconha sofreu uma das maiores campanhas de desinformação de que se tem notícia. Associada ao consumo de drogas, foi proibida na maioria dos países como uma substância perigosa. Hoje em dia, já se sabe que classificá-la apenas como entorpecente é um equívoco, pois sua vertente medicinal vem ganhando relevância no tratamento de uma crescente variedade de males. O interessante é que a vocação do produto para aliviar sintomas de doenças é conhecida há um bom tempo. No Brasil, cigarros contendo a planta chegaram a ser vendidos no início do século XX como solução para inúmeros problemas, de dor de cabeça a cansaço.

REFERÊNCIA - O brasileiro Elisaldo Carlini: pioneiro nos estudos sobre o potencial medicinal da Cannabis -
REFERÊNCIA - O brasileiro Elisaldo Carlini: pioneiro nos estudos sobre o potencial medicinal da Cannabis – (Filipe Redondo/Folhapress/.)

À medida que as proibições contra a Cannabis foram sendo retiradas, a quantidade de pesquisas aumentou. Apenas no ano passado foram produzidos 4 300 estudos científicos sobre o tema. Como resultado, existe farta evidência que comprova os benefícios para o tratamento de diversas condições. O principal uso é em pacientes com epilepsia refratária, que não respondem a outras terapias. Também é utilizada para pessoas com dor neuropática. E tem apresentado resultados impressionantes no tratamento de pacientes autistas. Há ainda forte evidência que aponta para a redução de sintomas de ansiedade e dor crônica. Embora seja oferecida como terapia para Parkinson e Alzheimer, não afeta a evolução de nenhuma delas, mas pode oferecer benefícios no bem-estar, um tópico subjetivo, que varia a cada paciente Não há — ainda — evidências que sustentem seu uso para o tratamento de câncer ou depressão. “É fundamental entender que a Cannabis não é uma panaceia, um remédio milagroso para todos os males”, diz o neurologista Renato Anghinah, pesquisador do tema.

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arte maconhaFonte: Kaya Mind

Quando prescrita de forma correta, no entanto, a planta pode oferecer resultados surpreendentes. Há inúmeros relatos de pacientes que tiveram melhora expressiva na qualidade de vida. O governador Tarcísio de Freitas revelou que seu sobrinho tem síndrome de Dravet e sofria com crises de epilepsia constantes que só melhoraram depois do tratamento com Cannabis. A especialista em direitos autorais Mary Barbosa, mãe de Antônio, uma criança de 3 anos e 5 meses diagnosticada com autismo, tentou inúmeros métodos tradicionais antes de buscar remédios à base de Cannabis. O medicamento mudou a vida de seu filho.

Antônio e Mary Barbosa
Antônio e Mary Barbosa – (Kaio Lakaio/.)

MELHOR QUALIDADE DE VIDA
Nos primeiros meses de vida do filho Antônio, de 3 anos, a especialista em direitos autorais Mary Barbosa percebeu comportamentos que a fizeram procurar por profissionais. “Ele não fixava o olhar, demorava para andar e falar”, conta. No início, a criança acordava mais de dez vezes toda noite, e não conseguia descansar. Foi preciso passar por vários psicólogos e neuropediatras até receber o diagnóstico de autismo. Antônio passou a fazer terapia ocupacional, mas sem muito avanço. “Eu havia lido sobre óleo de Cannabis e resolvi fazer uma consulta”, diz ela. O uso do remédio, associado à terapia, foi surpreendente. Agora, ele está mais calmo, melhorou a comunicação verbal, o nível de concentração e o sono. Amigos e familiares são unânimes em apontar a transformação. “Espero que mais pessoas conheçam os benefícios do óleo de canabidiol”, diz Mary.

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O paciente costuma percorrer um caminho tortuoso antes de conseguir ser medicado com Cannabis. Até o fim de 2022, a Anvisa havia aprovado 23 remédios para fabricação no Brasil, além de permitir a importação de muitos outros. O primeiro passo é encontrar um médico prescritor. Com a receita, é possível comprar o remédio na farmácia, se ele estiver disponível, ou fazer a importação. Há um trâmite legal chato e demorado, mas que vem sendo facilitado pelo site da Anvisa. Existem empresas que prestam esses serviços, desde a indicação de um profissional de saúde até a burocracia da importação. Em média, os medicamentos são recebidos em até vinte dias após a emissão da receita. “É preciso trabalhar a acessibilidade desses produtos, desde a informação até os meios de pagamento”, diz Fabrizio Postiglione, CEO da Remederi, empresa que oferece esses serviços. O preço é outra barreira. São remédios caros, que podem custar até 3 000 reais. Existem associações que buscam auxiliar pacientes que precisam dos medicamentos. Outra solução é entrar na Justiça e obrigar o Estado a pagar o tratamento.

MARCO - Governador Tarcísio de Freitas sanciona lei: inspirado pelo sobrinho -
MARCO - Governador Tarcísio de Freitas sanciona lei: inspirado pelo sobrinho – (Ciete Silvério/Governo do Estado de SP/.)

Ainda é cedo para entender de que maneira a distribuição de medicamentos pelo SUS vai impactar o mercado. Especialistas apontam que, de imediato, a busca por capacitação deverá aumentar. A Universidade de São Paulo passou recentemente a oferecer um curso de “medicina canabinoide” para profissionais do setor de saúde. Existem também outras iniciativas privadas, como a Dr. Cannabis, ligada ao grupo Cannect, destinado ao assunto, que abriu um curso introdutório para profissionais do SUS interessados em prescrever medicamentos canábicos. “Planejamos fazer uma turma de cinquenta alunos, mas já recebemos mais de 600 interessados em vários estados”, afirma Allan Paiotti, CEO da Cannect.

LIBERADO - Cigarros de Cannabis: vendidos nas farmácias brasileiras no início do século XX -
LIBERADO - Cigarros de Cannabis: vendidos nas farmácias brasileiras no início do século XX – (./Reprodução)

Saber prescrever é apenas o primeiro passo. Também é imprescindível acompanhar os pacientes ao longo do tratamento, o que exige a formação de equipes multidisciplinares, com farmacêuticos e enfermeiros. “Para vários pacientes, a Cannabis é a última esperança depois de diversos tratamentos”, afirma a médica especializada no tema Carolina Nocetti. “Por isso, é preciso responsabilidade para acompanhá-los de forma séria e não acabar com a esperança de famílias.”

À medida que o mercado amadurece, aumentam também as oportunidades de negócios. No mundo, o setor de Cannabis movimentou 16,7 bilhões de dólares no ano passado, um recorde. Além do uso recreativo, ou adulto (leia o quadro), a maconha também pode ser usada como substituto para o plástico e utilizada na fabricação de fibras. “A pauta moral tem sido um fator em toda e qualquer discussão sobre Cannabis”, diz Maria Eugênia Riscala, CEO da Kaya Mind, empresa que compila dados do setor. “Mas isso não pode ser um limitador para a medicina e a indústria como um todo”. Ou seja: é preciso deixar os preconceitos de lado e explorar todo o potencial de uma planta que pode mudar a vida de milhões de pessoas.

O USO RECREATIVO

CONSUMO ADULTO - Café na Califórnia: EUA têm legislação amigável -
CONSUMO ADULTO - Café na Califórnia: EUA têm legislação amigável – (Kyle Grillot/Bloomberg/Getty Images)

Além da discussão sobre os benefícios da Cannabis medicinal, outro debate costuma correr em paralelo: a liberação de seu uso adulto, ou recreativo. Trata-se do consumo de variedades de alto teor de THC, o composto responsável pelo “barato”. Em mercados em que o uso é liberado, há dezenas de variedades, com efeitos específicos descritos nas embalagens, de opções relaxantes a estimulantes, além de versões comestíveis que parecem balas de goma. Na América Latina, o principal exemplo de mercado maduro é o Uruguai, pioneiro na legalização da maconha, em 2013. O México também descriminalizou o consumo em 2021. Nos Estados Unidos, 21 estados, como Califórnia e Colorado, permitem o consumo recreativo. Na Europa, a referência é a Holanda, onde o consumo de drogas leves, como a maconha, é tolerado, principalmente nos coffee shops. Outros países, como Austrália, também discutem leis semelhantes. Contudo, o tema pressupõe posturas mercuriais.

A liberação do consumo tem defensores e críticos ferozes. Os detratores dizem que ela pode prejudicar o desenvolvimento de adolescentes, diminuir a motivação e abrir a porta para drogas mais pesadas. Faltam dados para confirmar essas afirmações, e não há nenhum registro médico de overdose. Do lado dos defensores, afirma-se que a liberação reduziria o poder do crime organizado e levaria produtos de qualidade comprovada ao usuário, além de gerar retorno ao Estado por meio de impostos. Existem exemplos positivos da legalização e da descriminalização, como no Canadá, que já discute a liberação de outras substâncias psicodélicas. Mas é uma discussão complexa que deve ser feita em conjunto com a sociedade. Para especialistas brasileiros, a legislação está longe de avançar, já que o estigma da maconha, embora esteja diminuindo, aos poucos, ainda é muito presente na sociedade, especialmente quando associado ao consumo de entorpecentes.

Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828

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