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Aprovação de novo remédio aquece discussão sobre obesidade entre jovens

A condição, que teve aumento estrondoso no Brasil em crianças e adolescentes, foi reforçada com o prolongado confinamento obrigatório da quarentena

Por Adriana Dias Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 ago 2020, 21h33 - Publicado em 14 ago 2020, 06h00
Felipe Torres Soares, 8 anos – (Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/VEJA)

FÔLEGO PARA O FUTEBOL
A dieta de Felipe Torres Soares, de 8 anos, mudou há dois anos. Em vez de pão no café da manhã, ovo. No lugar do suco pronto e da bisnaguinha no lanche, quatro castanhas. Até o início da quarentena, ele havia perdido 7 quilos. Com o confinamento, readquiriu 5. “Vou me dedicar muito agora porque o que mais quero é recuperar o fôlego para o futebol”, diz o menino são-paulino

Em uma decisão pioneira no mundo, o Brasil autorizou o uso de um medicamento emagrecedor para adolescentes. O aval, concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no início do mês, liberou a liraglutida, do laboratório dinamarquês Novo Nordisk, para meninas e meninos a partir de 12 anos. Até então, a permissão era dada apenas a adultos. Nos Estados Unidos, a aprovação está prevista para sair até o fim deste ano. O remédio, com pouquíssimos efeitos colaterais, age no sistema da saciedade e da fome do organismo, reduzindo em especial o desejo por alimentos gordurosos e ultracalóricos. O estudo que embasou a autorização, publicado na prestigiosa revista científica New England Journal of Medicine, mostrou que a droga diminui em até 10% o peso ao longo de um ano. É taxa aparentemente baixa a olhos leigos, mas foi motivo de celebração pela comunidade médica. “É a notícia mais impactante no tratamento de jovens obesos dos últimos anos”, diz Eduardo Rauen, professor de nutrologia da pós-graduação do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e médico do esporte. Os profissionais de saúde dispunham apenas de uma outra substância para essa faixa etária, o orlistate, que atua no intestino, mas com um efeito adverso que restringe a admi­nistração sobretudo entre a garotada: diarreia.

O QUE ERA DOCE… – Anúncio dos anos 1950 de refrigerante para crianças: “Por isso que temos os mais novos clientes no negócio. Ninguém faz isso como Seven-Up!” – (-/Reprodução)

A possibilidade de atacar a obesidade infantojuvenil com um fármaco restrito a pais e avós é realmente um marco. Poucas condições de saúde se tornaram tão dramáticas recentemente. Levantamento da Imperial College, em Londres, em parceria com a Organização Mundial da Saúde, revelou que nos últimos cinquenta anos o índice de crescimento do problema em crianças e adolescentes saltou globalmente em 1 027% — o dobro em relação aos adultos. No Brasil, hoje 15% das crianças e adolescentes acima de 5 anos de idade estão obesos. Na década de 70 eram apenas 3% (veja no quadro da pág. 63).

Guilherme Soares, 18 anos – (Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/VEJA)

A AJUDA MÉDICA FOI DECISIVA
Guilherme Soares, 18 anos, passou a vida comendo batata frita, macarrão instantâneo e hambúrguer, em casa ou no restaurante. Chegou a ficar com 25 quilos a mais. Aos 14 anos começou a treinar e notou que a alimentação atrapalhava seu rendimento, mas isso não bastou para mudar. “Sem acompanhamento médico não teria conseguido”, diz ele, atendido pelo nutrólogo e médico do esporte Eduardo Rauen

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A liraglutida tem uma história marcante na farmacologia. Ela nasceu em 2009, para o controle de diabetes do tipo 2. Com o tempo, porém, notou-se que os doentes emagreciam, com poucos danos colaterais. O efeito provocou uma corrida mundial às farmácias. No entanto, a ala mais conservadora da medicina rechaçou o excessivo uso off- label (utilização não oficial) da droga. Em 2012, porém, um artigo na British Medical Journal comprovou a ação tão desejada dos consumidores. Quatro anos depois, ela foi finalmente aprovada para a perda de quilos entre adultos. O composto imita uma substância natural do organismo, o GLP-1, o principal hormônio associado à sensação de saciedade e ao mecanismo de produção de insulina. O GLP-1 é sintetizado toda vez que o alimento chega à porção final do intestino delgado. Nesse momento, o hormônio ativa as células cerebrais de fastio e da fome e reduz os movimentos intestinais de contração, prolongando a satisfação alimentar. Mas, como o GLP-1 da liraglutida não depende da chegada de comida ao intestino, ele atinge concentrações na corrente sanguínea muito maiores do que a do hormônio natural — e dura mais no organismo, provendo o emagrecimento. O remédio é injetável e deve ser administrado diariamente. Por agir de maneira muito semelhante ao comportamento natural do organismo, a liraglutida também muda a forma como os pacientes se relacionam com a comida. A diferença surge já no segundo dia de tratamento. O apetite é reduzido no mínimo dois terços. Diz a endocrinologista Claudia Cozer Kalil, coordenadora do Núcleo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo: “A obesidade se tornou uma epidemia entre os jovens”. O claro vilão: a má alimentação. E por má alimentação entende-se não necessariamente grandes porções, mas excesso de produtos processados. Os meses de quarentena parecem ter piorado a situação. No início, as famílias se entusiasmaram com a oportunidade da convivência doméstica, despendendo horas a fio em torno da elaboração de pratos gostosos, naturais. Não durou muito, e a facilidade da comida industrializada entrou nos lares, naturalmente. Estima-se que 50% dos adolescentes que ficaram em confinamento ao longo de quatro meses ganharam peso, não só pela redução na atividade física, mas principalmente por se alimentar mal (leia os relatos ao longo desta reportagem).

No final da infância e na adolescência vive-se um paradoxo metabólico em relação ao emagrecimento. Em tese, fazer com que um corpo em pleno vigor da puberdade perca peso seria como ir contra a natureza. “O apetite do jovem, que tem o crescimento acelerado, é maior que o do adulto e o de uma criança”, diz o endocrinologista Antonio Carlos Nascimento, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. A título de comparação, um menino de 1,70 metro aos 16 anos de idade tem de consumir de 40% a 50% mais calorias do que um homem de 40 anos com a mesma altura. Come-se por vontade, para sustentar o corpo e as atividades diárias, mas também por necessidade. Nesse desenho, a facilidade de acesso a determinados tipos de alimentos engrossou o caldo do descontrole, e o que pedia apenas atenção agora exige muito cuidado — especialmente, insista-se, com a meninada.

Letícia Gimenes Martins, 13 anos – (Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/VEJA)

A TENTAÇÃO É NA CASA DA AVÓ 
A batalha de Letícia Gimenes Martins, 13 anos, para emagrecer começou aos 5 anos. Mas o empenho mesmo foi deflagrado no início da adolescência. A atividade física se intensificou e a alimentação em casa mudou em decorrência de sua dieta: o pão integral foi introduzido, a fritura abolida. Mas, quando ela visita a avó, que tem pena da neta, não tem jeito, ainda que os encontros tenham sido reduzidos. “Come frango à milanesa e sorvete”, diz a mãe, Aline

Parte da indústria começou a trilhar um novo caminho para se livrar do papel de algoz. Pesquisa mundial conduzida pela Deloitte, empresa especializada em consultorias e auditorias, mostrou que nove em cada dez companhias de alimentação introduziram em 2017 ao menos um produto formulado ou reformulado para se tornar mais saudável — com menos sal, gordura ou açúcar. Outro levantamento, do instituto Euromonitor, identificou globalmente uma expansão anual de 1,8% do mercado de comida industrializada saudável, ante 1,5% do lote tradicional, banhado de conservantes e similares. No Brasil o naco não para de crescer — chegou, em 2018, a 10,7% do total de vendas do setor, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos. Mas há muito a ser feito ainda. As vendas de alimentos industrializados cresceram 25% no mundo entre 2017 e 2019. A tendência se reflete nos fast-foods, com alta mundial de 30%.

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É impossível, no entanto, excluir da balança os responsáveis pela escolha (ou no mínimo pelo pagamento) da comida da criança e do adolescente: os pais. Cerca de 70% da ingestão calórica de um garoto ou uma garota de até 12 anos acontece sob os domínios da família. O mesmo ocorre com metade dos que estão mais próximo dos 18 anos. O ritual de reunir a família em torno de uma mesa na hora das refeições seria, por si só, saudável. Pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, comprovaram que crianças e adolescentes que se sentam à mesa com os adultos têm uma alimentação mais equilibrada e menos risco de travar guerras contra a balança. O trabalho, conduzido com 183 000 garotas e garotos de até 17 anos, constatou que três refeições por semana em família reduzem os índices de obesidade — houve diminuição de 12% no sobrepeso. Mas esse mundo ideal inexiste em grande parte das residências. Pais ocupados ou exaustos inúmeras vezes oferecem aos filhos macarrão instantâneo, nuggets de frango congelados e sucos de caixinha. Houve o breve interregno dos primeiros dias de quarentena, mas já passou. E, agora, retoma-se a linha evolutiva da história contada pelo que vai à boca — e que a propaganda alimentou.

Nos anos 1950, as diversas formas de empacotamento, revolução recém-nascida, permitiram o planejamento de um cardápio inteiro à base de produtos prontos — enlatados, desidratados, congelados. Naquele tempo de inovações aceleradas, era comum a ode ao consumo de calorias nos lares. Criança robusta era sinônimo de criança saudável. Acreditava-se que, com um estoque generoso de gordura, ela dispunha também de uma grande reserva de energia, o que a protegeria contra as doenças. As empresas anunciavam seus produtos repletos de açúcar como se fossem um néctar. Bebês apareciam tomando refrigerante. Na década de 60, a associação da indústria do açúcar dos EUA lançou campanhas exibindo o produto como regulador de apetite. Não é mais assim, mas a cultura da comida, digamos, fácil, é atávica e pressupõe esforço enorme para ser vencida.

A obesidade infantil, filha dessa postura desregrada, se não for tratada, é um gatilho para doenças crônicas e graves. Adultos com obesidade desde a infância vivem até dez anos menos em relação aos que mantiveram a linha. “Sob o ponto de vista fisiológico, se fosse escolher a pior fase da vida para ser obeso eu diria que é na adolescência”, diz o nutrólogo Rauen. Um dos principais motivos: o número de células adiposas, que retêm gordura, conhecidas como adipócitos, é geralmente definido até os 20 anos. Depois dessa idade, nada é capaz de diminuir a quantidade de adipócitos, nem o mais drástico regime alimentar. Vale o sábio conselho que virou mantra entre os bons endocrinologistas: “A melhor forma de emagrecer é nunca engordar”. Cuidemos das crianças e adolescentes.

Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700

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