Alucinação, delírio, paranoia: saiba como a psiquiatria define sintomas alegados por Bolsonaro
Ex-presidente tentou abrir tornozeleira após relatar ter "ouvido vozes"; equipe médica citou interação de remédios, mas especialistas consideram efeito incomum
O ex-presidente Jair Bolsonaro foi preso preventivamente em regime fechado no último sábado, 22, acusado de tentar violar a tornozeleira eletrônica com a qual era monitorado em sua residência, em Brasília. Na audiência de custódia, o político alegou ter vivido uma “alucinação“ e “certa paranoia”, que o teriam levado a usar um ferro de solda para abrir o dispositivo, após supostamente ouvir vozes vindas da tornozeleira.
Segundo o psiquiatra Daniel Barros, do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq/USP), a descrição de Bolsonaro envolve conceitos distintos, que podem ou não coexistir. Ele explica que alucinação ocorre quando a pessoa percebe algo que não existe — uma voz, um som, uma figura —, caracterizando uma falha na percepção sensorial. Já a paranoia é uma alteração do pensamento, marcada por crenças infundadas, geralmente persecutórias, como sentir-se monitorado, filmado ou alvo de conspiração.
É nesse terreno que surge o delírio, categoria mais ampla para essas alterações. “O delírio é uma crença que não tem relação com a realidade. A pessoa acredita de forma muito intensa, mesmo quando todos os dados objetivos mostram o contrário”, afirma Barros. Essas crenças podem ser extravagantes — “achar que marcianos estão invadindo a Terra” — ou aparentemente banais, mas igualmente desconectadas do mundo real. “A paranoia é um tipo específico de delírio: o delírio de perseguição.”
Nessas condições, comportamentos como tentar abrir um dispositivo de monitoramento para verificar se há escuta podem ocorrer. “Se a pessoa realmente acredita que está sendo gravada, ela pode tomar medidas concretas para ‘confirmar’ essa perseguição. Não é impossível dentro de um quadro delirante”, diz o psiquiatra.
Por outro lado, ele considera pouco plausível que esse tipo de pensamento surja de forma abrupta. Quadros delirantes, afirma, costumam estar ligados a transtornos que rompem com a realidade — como esquizofrenia, transtornos do humor em suas formas graves (bipolaridade ou depressão psicótica) ou mesmo uso de drogas. Em outras palavras, dificilmente um episódio desse tipo aparece do nada: geralmente há outros sinais compatíveis com esses transtornos e, muitas vezes, episódios semelhantes ao longo da história clínica.
Mistura de medicamentos
Ainda na audiência de custódia, Bolsonaro, que estava preso em regime domiciliar desde agosto, atribuiu sua atitude aos remédios que estava tomando: pregabalina, um anticonvulsivante também usado no tratamento da ansiedade, e sertralina, um antidepressivo. A equipe médica mencionou ainda a possibilidade de interação com outros medicamentos que ele utilizava previamente para crises de soluço, como gabapentina e clorpromazina.
A suspeita maior recaiu sobre a pregabalina, já que o ex-presidente afirmou ter iniciado o uso “cerca de quatro dias antes” do episódio e não ter vivido nada semelhante antes disso.
Barros, porém, descarta que esse tipo de alteração do pensamento possa ter sido provocado pelas medicações citadas. “A sertralina é antidepressiva, não tem esses efeitos. A pregabalina pode deixar a pessoa sonolenta ou levemente confusa, mas não produz um pensamento delirante estruturado”, afirma. Segundo ele, mesmo a interação com gabapentina ou clorpromazina não sustentaria um quadro desse tipo.
O psiquiatra do IPq também relativiza a hipótese de que estresse ou privação de sono tenham desencadeado o episódio. Para que isso ocorra, explica, seria necessário um grau extremo e contínuo de estresse. “Tem que ser algo muito intenso, como situações de tortura, em que a pessoa é impedida de dormir. Mesmo em cenários estressantes, como uma prisão, não é comum ver um quadro delirante surgindo apenas por isso.”
Ele acrescenta que dor crônica ou outras doenças clínicas, em geral, também não explicam o surgimento de quadros delirantes, exceto quando afetam diretamente o funcionamento do cérebro. Nesses casos, porém, os sintomas costumam vir acompanhados de outras alterações neurológicas ou comportamentais. Já com relação ao tratamento, Barros destaca que o manejo de quadros como alucinações e paranoia depende da causa subjacente. “Quando há uma doença de base, trata-se a condição principal. De forma geral, quadros delirantes são manejados com antipsicóticos”, diz.
Médicos alteram medicações
A equipe médica de Bolsonaro informou que o medicamento que supostamente teria causado quadro de confusão mental no ex-presidente foi suspenso. No boletim assinado pelo cirurgião geral Claudio Birolini e pelo cardiologista Leandro Echenique, os médicos afirmam que a medicação havia sido prescrita por outra profissional, com o objetivo de otimizar o tratamento, mas sem o conhecimento ou consentimento da equipe.
“O medicamento foi suspenso imediatamente, sem sintomas residuais neste momento. Foram realizados os ajustes necessários na medicação, restabelecendo a orientação anterior”, dizem.
Os médicos relatam ainda que Bolsonaro “encontra-se estável do ponto de vista clínico e passou a noite sem intercorrências”, e afirmam que seguirão acompanhando a evolução clínica do ex-presidente com reavaliações periódicas.
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