“A única certeza era a esperança”
O neurocirurgião Gabriel Mufarrej, 61, conta como conseguiu separar gêmeos unidos de forma rara pelo crânio
Em abril de 2019, fui chamado pelo Hospital do Cérebro, uma unidade pública de referência no Rio onde trabalho, para acompanhar um raríssimo caso de gêmeos unidos pelo crânio. Arthur e Bernardo eram ligados pelo topo da cabeça, sendo que um olhava para baixo e o outro, para cima, e viviam deitados. O quadro se tornava ainda mais complexo porque eles compartilhavam 15% do cérebro e ainda uma veia que conduzia o sangue da cabeça até seus corações. Quando conheci os pais, vindos de Roraima, estavam em intenso sofrimento, com medo de perder as crianças, àquela altura com 8 meses. Logo entendi que o caso era o maior desafio de minha trajetória profissional de quase quatro décadas e saí de lá com a convicção de que faria tudo o que estivesse ao meu alcance para ajudar a família.
Tomar a decisão de realizar uma cirurgia para separá-los não foi simples. Um dos maiores especialistas do mundo nesse tipo de procedimento, que envolve crânios fixados um no outro, veio ao Brasil avaliar a situação e desaconselhou a operação, dada sua delicadeza e o risco. A notícia devastou os pais, que, dilacerados, precisaram de acompanhamento psicológico. Pois mesmo tendo escutado atentamente as palavras de meu colega, não me convenci. Com anuência dos pais, segui adiante com o plano de submeter os gêmeos à cirurgia. Adriele, a mãe, um dia soltou uma frase que me marcou. Não queria que os filhos continuassem naquele calvário. “Até a morte para mim é uma solução, só não posso conviver com o sofrimento deles”, disse. Ouvi-la assim só aumentou minha obstinação. E passei noites em claro estudando o caso.
Recorri à ciência e a todos os recursos do hospital. Por meio de convênios com universidades, obtive modelos anatômicos do cérebro dos garotos em 3D, para determinar o local exato da veia que eles compartilhavam. Também fizemos versões digitais que me permitiram discutir o assunto com o britânico Owase Jeelani, outro grande expert, que passou a me auxiliar. Teriam de ser feitas várias operações. A primeira delas foi tomada pelo medo. O procedimento tinha o objetivo de dissecar vasos sanguíneos que alimentavam a veia dividida pelos gêmeos, como se estancasse os afluentes de um rio. Trilhando o protocolo, decidimos intervir pelo lado do Arthur, o mais frágil e com menos chances de sobreviver. São decisões médicas complexas e doloridas. Após cinco cirurgias, o cérebro dele foi capaz de encontrar novos caminhos para levar o sangue ao coração. Notei, no entanto, que se o operasse mais uma vez ele não aguentaria. Tomei então uma decisão nunca antes tentada na medicina: fazer as cirurgias seguintes no Bernardo, o gêmeo mais forte. Isso colocava a vida dos dois em risco. Felizmente, a escolha se mostrou acertada.
Os irmãos, enfim, estavam prontos para ser separados. Pairava um clima de otimismo e aí foi necessário trazer a família e minha própria equipe à realidade: o mais difícil estava por vir. A operação mobilizou quase 100 profissionais e ocupou todas as salas do centro cirúrgico. Ainda que com tanto planejamento, fomos surpreendidos com a ruptura de uma parte da veia, o que causou um enorme sangramento. Agimos rápido e estabilizamos o quadro. Na hora da separação, mais dificuldades: os vasos estavam muito profundos, e Arthur parecia que não iria resistir. Com técnica e fé, vencemos o obstáculo com o auxílio de um ultrapotente microscópio. Ver as duas macas se afastando e os irmãos separados foi um momento de pura emoção. Hoje com 4 anos, eles se recuperam bem. Algumas sequelas permanecerão para o resto da vida e é difícil saber quais habilidades eles vão desenvolver. O progresso, porém, impressiona. Os irmãos já dançam em seus carrinhos, estão aprendendo a se comunicar e um deles, o Arthur, fica até de pé. Eles me ensinaram de forma tocante que a única certeza que podemos ter é a esperança.
Gabriel Mufarrej em depoimento dado a Ricardo Ferraz
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806