Uma fada doméstica
Charlize Theron brilha em 'Tully' — sua nova parceria com o diretor e a roteirista de 'Juno'
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A qualquer hora do dia, uma camada espessa de cansaço recobre o semblante de Marlo — e, lá do fundo, vem um olhar que é um pedido de socorro já esquecido e sobrescrito por um atestado de resignação. No desempenho belíssimo de Charlize Theron, a protagonista de Tully (Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, não registra sua exaustão como algo especial ou anormal. Com uma menina no ensino elementar, um menino no espectro do autismo e um bebê pronto para saltar da barriga, Marlo simplesmente continua a funcionar. A casa é uma zona, e o jantar às vezes é pizza descongelada no micro-ondas. Mas Marlo não grita com as crianças, não esquece de buscá-las na saída da aula, não se ressente do marido (Ron Livingston), que joga videogame na cama antes de dormir, não economiza no carinho. Às vezes, o senso de humor dela é mal compreendido — mas nem todo mundo tem a inteligência afiada e algo frustrada de Marlo, nem sabe o custo de ter de se engalfinhar assim, corpo a corpo, com a maternidade e a vida cotidiana.
Quando a terceira filha nasce, porém, trazendo consigo a rotina brutal das fraldas sujas, da amamentação e da privação de sono — resumida pelo diretor Jason Reitman numa montagem que rivaliza com uma outra, antológica, que criou para Amor sem Escalas —, Marlo reconhece estar por um fio: depois de mais uma discussão ácida com a diretora da escola sobre as dificuldades do filho do meio, ela afinal caça na bolsa o número de telefone da babá noturna com que o irmão rico tentou presenteá-la. Às 10 e meia da noite, Tully (Mackenzie Davis) bate à porta. De manhã, uma repousada Marlo acorda para uma casa limpa e arrumada. Noutro dia, encontra na cozinha uma bandeja de muffins ainda quentes. Diz para o marido: “Acho que até voltei a enxergar em cores”. Tully é jovem, alegre, moderna e magra — mas é uma autêntica fada madrinha.
Tully é uma instigante (e comovente) progressão lógica da parceria entre Reitman e a roteirista Diablo Cody — que começou com Juno, sobre uma adolescente que engravida e decide dar o bebê para adoção, e prosseguiu com Jovens Adultos (aí já incluindo Charlize na colaboração), sobre uma mulher de 30 e poucos anos que não compreende que o ex-namorado possa ser feliz com mulher e filho. Tully despertou, ainda, um tanto de curiosidade por ser o filme para o qual Charlize ganhou mais de 20 quilos. O peso extra não modifica nem sua beleza nem seu talento, e nada tem a ver com recurso histriônico: é uma manifestação da bagagem que uma mulher com emprego, família, casamento, afetos e obrigações vai acumulando. Encontrar alguém com quem repartir a carga, porém, é uma bênção. Mais ainda porque Tully é algo precioso: é a única coisa que pertence só a Marlo. Chega quando todos já estão dormindo, vai embora antes que despertem. Nessa intimidade com uma garota arrojada que admira sua constância e dedicação, Marlo se reconcilia com suas demandas e constata que nem se enciuma tanto de compartilhar os cuidados com a recém-nascida. Ao contrário: com Tully levando-a pela mão, essas semanas ficam ainda mais mágicas. Se parece bom demais para ser verdade, é porque Reitman, Diablo e Charlize, em um momento excepcionalmente maduro da carreira, têm algo a dizer que é de partir o coração do espectador, para então banhá-lo em amor por sua protagonista.
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584