Um tiro no próprio pé
Mais uma vez, Trump concede a um líder estrangeiro autoritário a chance de sair do isolamento
Cúpula de Helsinque, na Finlândia, na segunda-feira 16, a primeira em oito anos entre um presidente americano (Donald Trump) e um russo (Vladimir Putin), pode ser descrita em cinco etapas: a do pânico, a da incógnita, a do ultraje, a do falso arrependimento e a da confusão geral. A primeira etapa caracterizou-se pelo desespero de que o presidente americano pudesse fazer concessões excessivamente generosas a Putin sem obter nada em troca. O temor demonstrado por políticos democratas, analistas internacionais e autoridades europeias atingiu o auge quando Trump, horas antes do encontro, escreveu no Twitter: “Nossas relações com a Rússia NUNCA estiveram pior graças aos muitos anos de tolice e estupidez dos EUA”. Isso foi demais até para apoiadores de longa data de Trump. Quer dizer que a anexação da Crimeia, na Ucrânia, em 2014, a derrubada (no mesmo ano e nos céus daquele país) de um avião comercial com 298 pessoas a bordo, a tentativa de assassinar desafetos políticos por envenenamento na Inglaterra, o apoio militar ao ditador sírio Bashar Assad — nenhum desses atos de agressão cometidos pela Rússia serve para explicar o esfriamento das relações com o país, mas sim a “estupidez” de administrações americanas anteriores?
Se Trump foi capaz de dizer tamanho disparate, o que faria ele quando estivesse sozinho diante de Putin? Ninguém ficou sabendo. Na segunda etapa da cúpula, o encontro propriamente dito, que durou mais de duas horas e ocorreu a portas fechadas, apenas com os intérpretes como testemunhas, grassou a incógnita. Não foram divulgados detalhes da conversa. Acredita-se, ao menos, que não tenha saído dali nenhuma promessa por parte de Trump de aliviar as sanções econômicas que foram impostas pelos EUA contra a Rússia como punição pela intervenção militar na Ucrânia. De resto, os outros temas (proliferação nuclear, intercâmbio empresarial) foram mencionados apenas genericamente pelos próprios presidentes na terceira etapa da cúpula: a entrevista que ambos concederam juntos à imprensa mundial — e aí chegamos à fase do ultraje.
Deu-se, na entrevista, o esforço patético de Trump de agradar a Putin a qualquer custo. Isso ficou mais patente quando os jornalistas perguntaram aos dois sobre a interferência russa nas eleições americanas de 2016, fato já comprovado por nada menos que sete órgãos de investigação americanos (veja o quadro abaixo). Putin, como era de esperar, negou que isso tenha acontecido. A resposta de Trump, porém, causou espanto inaudito. Disse o presidente americano: “Meu pessoal veio até mim, Dan Coats (diretor de inteligência nacional) e alguns outros vieram e disseram que acham que foi a Rússia (que interferiu nas eleições). Estou com o presidente Putin. Ele acabou de dizer que não foi a Rússia. Vou dizer o seguinte: eu não vejo razão para ter sido. (…) Eu tenho grande confiança no meu pessoal de inteligência, mas devo dizer que o presidente Putin foi muito forte e poderoso em sua negativa”. A resposta parece ainda mais esquizofrênica quando se leva em conta que, apenas três dias antes, na sexta-feira 13, Trump autorizou que o Departamento de Justiça divulgasse o indiciamento — por parte do procurador especial Robert Mueller, que investiga a interferência russa nas eleições — de doze agentes de inteligência russos, acusados de hackear os computadores da campanha de sua adversária Hillary Clinton, em 2016. No dia seguinte, como resultado de uma investigação em separado, o FBI prendeu Maria Butina, uma russa de 29 anos acusada de atuar ilegalmente como agente de Moscou nos Estados Unidos para obter informações e contatos junto ao Partido Republicano. Mais uma prova, portanto, da interferência russa na política americana.
Ao demonstrar mais confiança na palavra de Putin, um ex-espião da KGB soviética, do que nas próprias agências americanas, Trump foi duramente criticado não apenas por seus detratores de sempre, mas por políticos importantes de seu partido. “O presidente precisa entender que a Rússia não é nossa aliada. Não há equivalência moral entre os Estados Unidos e a Rússia, que continua hostil aos nossos valores e ideais mais básicos”, disse o republicano Paul Ryan, presidente da Câmara dos Representantes. Até o Drudge Report, site que se comporta como porta-voz do trumpismo, ficou incomodado. Mais um pouco e também a Fox News, emissora que diz amém a qualquer reza de Trump, censuraria o presidente.
A revolta foi de tal magnitude entre as mentes sensatas que, no dia seguinte, Trump tentou consertar a repercussão desastrosa de seu desempenho em Helsinque com uma saída juvenil. Quando afirmou “não vejo razão para ter sido” a Rússia, na verdade ele quis dizer “não vejo razão para não ter sido” a Rússia. Essa foi a etapa do falso arrependimento, pois Trump não corrigiu nenhum dos outros trechos das declarações que fez ao lado de Putin e que demonstravam igual conformidade com a versão russa dos fatos. Mais do que isso, Trump tratou de esvaziar a própria correção ao acrescentar que a interferência não foi necessariamente da Rússia: “Pode ter sido qualquer um”.
Na noite da quarta-feira 18, entrou em cena a quinta fase do encontro — a da confusão geral. Em entrevista a uma emissora de TV americana, Trump fez um balanço completamente inédito de seu encontro com Putin. Disse que foi enfático com ele ao afirmar que considerava inaceitável qualquer interferência russa na democracia americana. “Deixei claro que isso não pode acontecer. E que é assim que vai ser”, revelou Trump na entrevista. Não se tratava mais, portanto, de uma palavra que faltou em uma frase e que causou um mal-entendido. A afirmação à TV contradiz inteiramente o relato que Trump fez dois dias antes da conversa a portas fechadas com Putin. Só há uma explicação: Trump mentiu. Mas em qual das versões? Em todas? Não seria de estranhar.
Com reportagem de Thais Navarro
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592