Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

Um silêncio imoral

Nobel da Paz de 1991 e líder política de Mianmar é criticada internacionalmente por silenciar a respeito do massacre de uma minoria étnica de seu país

Por Johanna Nublat Atualizado em 15 set 2017, 06h00 - Publicado em 15 set 2017, 06h00
arte-sem-direito-devolucao
(Arte/VEJA)

No intervalo de apenas cinco anos, a vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 1991, Aung San Suu Kyi, de Mianmar (antiga Birmânia), passou de festejado ícone da democracia a alvo de condenação internacional. Em junho de 2012, após duas décadas de prisão, quando enfim estava livre para viajar, Aung foi à Noruega para discursar no Nobel e de lá seguiu para Dublin, a capital da Irlanda, no jato particular do cantor Bono, do U2. No palco, em um show da banda pop, foi homenageada por seus esforços em proteger os direitos humanos e por sua resistência pacífica contra a junta militar que controlou Mianmar por quase cinco décadas. Bono a considerava “o Nelson Mandela dos nossos tempos” e “um símbolo do que há de melhor na nossa humanidade”.

Nas últimas semanas, contudo, Aung passou a ser criticada publicamente por outros ganhadores do Nobel. Na internet, proliferam os pedidos para que ela perca a condecoração. Seu pecado: calar-se diante da matança de muçulmanos em seu país. Pouco conhecidos ao redor do mundo, os ­rohingyas são uma minoria étnica do sul da Ásia. Em Mianmar, são 1 milhão de pessoas, um terço da população do pobre Estado de Rakhine, na fronteira com Bangladesh. Eles vivem na região desde o século XV, quando migraram para formar o já extinto reino islâmico de Arakan. Os rohingyas de Mianmar são apátridas, pois o governo do país, cuja população é 88% budista, não lhes concede cidadania.

Desde 2011, com a relativa abertura política, alguns rohingyas foram cooptados por radicais muçulmanos. Em 25 de agosto, um grupo conhecido como Exército da Salvação Arakan Rohingya atacou postos da polícia e uma base militar. Desde então, houve uma retaliação do governo. Ainda que o budismo no Ocidente ostente valores nobres, no Sudeste Asiático ele está mais ligado à observância dos ri­tuais e à preservação da ordem. Aos olhos dos birmaneses budistas, o Estado de Rakhine é um portão que, se não estiver bem protegido, pode permitir uma invasão que implantaria o domínio muçulmano em todos os países da região. Assim, a reação ao ataque de 25 de agosto foi desmedida e dirigida contra toda a população.

“Os militares usaram a tática da terra arrasada e queimaram um vilarejo atrás do outro, matando civis. Até agora, já registramos cinco massacres”, diz Chris Lewa, diretora do Projeto Arakan, ONG com sede na Tailândia que monitora a situação em Rakhine desde 2000. Vilas foram queimadas. Mulheres e crianças foram estupradas. Homens foram degolados. Nas últimas duas semanas, mais de 370 000 rohingyas cruzaram a fronteira com Bangladesh. A atrocidade foi definida como “limpeza étnica” pelo alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein.

Continua após a publicidade

Para desapontamento geral, Aung deu raras e infelizes declarações sobre os rohingyas, todas antes da escalada do conflito étnico. Em entrevista ao canal inglês BBC em abril deste ano, a vencedora do Nobel da Paz disse que chamar o conflito de limpeza étnica era “uma expressão forte demais”. Em 2013, disse que o problema em Rakhine se devia ao “medo de ambos os lados”, tanto dos muçulmanos quanto dos budistas nacionalistas. Agora, em meio às críticas, ela cancelou sua ida à Assembleia-Geral da ONU em Nova York, que começa nesta terça-feira, dia 19.

Uma possível explicação para o silêncio de Aung é que ela não tem todo o poder que se imagina. Apesar de terem permitido eleições gerais, os militares ainda influenciam a política e a economia do país. Aung nem sequer ostenta o título de presidente, apesar de ser considerada a chefe do governo. Filha do general Aung San, herói nacional que negociou um acordo de independência com os ingleses em 1947 e morreu assassinado antes de ver seu país livre, ela viveu por três décadas no exílio antes de retornar a sua terra natal para visitar a mãe convalescente, em 1988. Acabou ficando por lá, e rapidamente se tornou uma das lideranças do partido de oposição Liga Nacional Democrática. Foi presa em 1989 e passou quinze dos 21 anos seguintes atrás das grades ou proibida de sair de casa. Carismática, costumava ter o respeito de todos os grupos étnicos de Mianmar. Em 1990, seu partido venceu a eleição com 60% dos votos. O resultado foi descartado pela junta.

Durante o longo período de detenção, Aung viveu longe dos dois filhos e do marido, britânico, que moravam na Inglaterra. Com medo de deixar o país e nunca mais poder voltar, ela rejeitou a oferta de sair da prisão domiciliar para visitar o marido antes que ele morresse de câncer, em 1999. No pleito de 2015, cinco anos depois de ser libertada, seu partido saiu-se novamente vencedor, dessa vez com 77% das cadeiras, com maioria nas duas casas legislativas. Em Mianmar, o presidente é eleito pelos congressistas. Aung era o nome natural para o cargo, mas a Constituição exige que o ocupante tenha experiência militar e não possua laços familiares com estrangeiros. Ela acabou sendo alçada ao posto de conselheira de Estado, função criada especialmente para ela. Ainda que seja considerada a líder de fato do país, ela nada pode fazer sem a anuência dos militares. “As Forças Armadas são responsáveis pelos abusos em Rakhine e só elas podem acabar com isso”, diz a inglesa Laura ­Haigh, pesquisadora da Anistia Internacional para Mianmar.

Myanmar State Counselor Aung San Suu Kyi talks during a news conference with India's Prime Minister Narendra Modi in Naypyitaw, Myanmar September 6, 2017. REUTERS/Soe Zeya Tun
Aung San Suu Kyi (Soe Zeya Tun/Reuters)

Apesar da pressão internacional, o risco de Aung perder o Nobel é nulo. Como lembrou um ex-­integrante do comitê que lhe concedeu o prêmio, o título não é uma declaração de santidade. Além disso, depois da decisão, a responsabilidade da instituição acaba. Muitas vezes, a escolha é feita mais com o objetivo de estimular um certo comportamento futuro do que de parabenizar um comportamento passado. Quando Barack Obama ganhou o Nobel da Paz, em 2009, ele nem sequer tinha completado um ano na Presidência dos Estados Unidos. No cargo, não conseguiu fazer por merecer o título de pacifista.

A dimensão do Nobel, contudo, pressupõe que seus agraciados entendam a universalidade dos direitos humanos, que não podem estar circunscritos a fronteiras religiosas ou étnicas. O arcebispo sul-africano Desmond Tutu, que recebeu o Nobel da Paz em 1984, escreveu uma carta aberta a Aung em 7 de setembro: “Minha querida irmã, se o preço político de sua ascensão ao mais alto posto em Mianmar é seu silêncio, o preço é certamente exorbitante”. A paquistanesa Malala Yousafzai, Nobel da Paz de 2014, disse: “Nos últimos anos, condenei repetidamente esse tratamento trágico e vergonhoso. Ainda estou esperando minha colega laureada pelo Nobel Aung San Suu Kyi fazer o mesmo. O mundo está esperando, e os muçulmanos rohingyas também”.

Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.