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Um intelectual pop

Como o historiador Yuval Harari, que lança seu terceiro livro no Brasil, tornou-se um improvável best-seller e um discreto profeta de pesadelos tecnológicos

Por Filipe Vilicic, André Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 ago 2018, 07h00 - Publicado em 24 ago 2018, 07h00

Yuval Noah Harari é uma criatura rara entre os autores mais vendidos no mundo hoje. Não escreve para o mercado que os americanos designam como young adult — jovem adulto —, que impulsionou os sucessos de uma Stephenie Meyer ou de um John Green. Tampouco é uma celebridade de rede social, embora o universo dos instagrammers, youtubers e digital influencers entre na paisagem que ele desenha em 21 Ideias para o Século 21, o novo livro cujo lançamento global se dará nesta quinta-feira, 30. Trata-se de um acadêmico, um homem das ciências humanas, com formação em história pela vetusta Universidade de Oxford, na Inglaterra. Frequenta o circuito fast-food de divulgação do pensamento que se organizou em torno das conferências TED, mas mantém o pé na academia, lecionando na Universidade Hebraica de Jerusalém. O extraordinário poder de síntese histórica que demonstrou em Sapiens, seu primeiro best-seller, de 2011, e ainda hoje no topo da lista de não ficção de VEJA, e a ousadia especulativa de Homo Deus lançaram esse historiador de 42 anos ao estrelato. Juntas, as duas obras venderam 12 milhões de exemplares em sessenta países. Para fins de comparação, considere-se que um dos livros mais discutidos da década, O Capital no Século XXI, no economista francês Thomas Piketty, vendeu 2,5 milhões. Harari é um intelectual pop.

21 LIÇÕES PARA O SÉCULO 21, Yuval Noah Harari (tradução de Paulo Geiger; Companhia das Letras; 432 páginas; 54,90 reais ou 29,90 em versão digital) (//Divulgação)

Sapiens — Uma Breve História da Humanidade venceu pela oferta de informação densa em relativamente poucas páginas (menos de 500). Harari consolidou ali uma série de estudos científicos e históricos para demonstrar como se deram os saltos evolutivos que, ao longo de mais de 200 000 anos, levaram um singelo primata, o Homo sapiens, a dominar o planeta. Em Homo Deus, ele entrou em terreno que muitos historiadores consideram temerário: como anuncia o subtítulo do livro, Uma Breve História do Amanhã, trata-se de uma hipótese sobre o futuro a longo prazo. A humanidade, propõe Harari, se dividirá em duas espécies: ao lado do Homo sapiens, nossa tradicional grife biológica, surgirá o Homo Deus, cujo corpo e cérebro serão aprimorados por tecnologias caras. O autor prevê, assim, um novo conflito de classes, não mais nos moldes que Karl Marx desenhou no século XIX, entre proletários e burgueses, mas entre uma elite que dominará os dados digitais, as inovações da bioengenharia e o comando de grandes corporações do Vale do Silício e, de outro lado, as pobres pessoas comuns que não terão dinheiro nem influência para desfrutar esses avanços.

Essas previsões um tanto soturnas fascinaram líderes como o ex-presidente americano Barack Obama e — o que pode ser considerado uma ironia — titãs da tecnologia como Bill Gates, da Microsoft, e Mark Zuckerberg, do Facebook. Harari, com Homo Deus, filiou-se a uma tradição de previsões cientificamente fundamentadas (o que não significa que sejam acertadas) sobre o futuro, ramo mais frequentado por cientistas e escritores de ficção científica do que por historiadores. À diferença de figuras como Arthur C. Clarke e Ray Kurzweil, Harari tende a enfatizar o potencial apocalíptico da tecnologia. É o autor certo para um tempo em que males da industrialização como o aquecimento global estão na ordem do dia.

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Seu novo trabalho, lançado simultaneamente em mais de cinquenta países e 34 línguas, dá continuidade aos temas abordados em Sapiens e Homo Deus. Se o primeiro se debruçava sobre o passado da humanidade e o segundo sobre o futuro, 21 Lições para o Século 21 reflete acerca do presente. A questão que permeia o texto é: “Quais são os desafios a ser enfrentados hoje pela civilização e como superá-los?”. Resulta daí um livro mais, digamos, pé no chão do que Homo Deus. Algumas de suas 21 questões: as mudanças climáticas; a possibilidade de uma guerra nuclear com a ascensão de líderes de perfil autoritário como Donald Trump; o desemprego em consequência da automação; o crescente monopólio da internet por poucas corporações.

21 Lições para o Século 21 preocupa-se sobretudo com a crise pela qual passa o atual modelo político e econômico. “O liberalismo não tem respostas imediatas para os maiores problemas que enfrentamos: o colapso ecológico e a disrupção tecnológica”, escreve Harari. Com sensibilidade didática, o autor fala diretamente às perplexidades de seus leitores diante do mundo contemporâneo: “Em 2018 a pessoa comum sente-se cada vez mais irrelevante. Um monte de palavras misteriosas são despejadas excitadamente (…) — globalização, blockchain, inteligência artificial, aprendizado de máquina —, e as pessoas comuns bem podem suspeitar que nenhuma dessas frases tem a ver com elas”.

Embora discreto em sua vida pessoal, Harari também acumula uma série de elementos biográficos que contribuem para seu estatuto pop. Na vida e na obra, é um homem alinhado à sensibilidade progressista moderna. Gay assumido, aborda o medo da ascensão de autocracias que atentam contra as conquistas da revolução sexual. Levanta a bandeira da sustentabilidade não só nos livros, mas na própria dieta vegana. Ateu, critica as derivações fanáticas da religião. Sem ser propriamente engajado ou partidário, o historiador abraça todas as causas que nutrem os espíritos mais críticos. Seu triunfo está não apenas em delinear como em personificar suas 21 questões.

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Problemas cada vez mais globais

DEMASIADO HUMANO – Harari: nem algoritmos são livres de preconceito (Richard Stanton/.)

Em entrevista por e-mail, o historiador israelense Yuval Noah Harari fala de alguns dilemas globais examinados em 21 Ideias para o Século 21.

Entre os temas do livro, quais são os desafios globais mais prementes? Neste momento a humanidade enfrenta três, em especial: a possibilidade de uma guerra nuclear, o aquecimento global e a revolução tecnológica. São problemas globais — eles não serão resolvidos por uma única nação. O governo brasileiro não consegue proteger o país da guerra nuclear ou do aquecimento global, a menos que coopere com a China, os Estados Unidos e a Rússia. Da mesma forma, se há medo do potencial apocalíptico da inteligência artificial (IA) e da bioengenharia, não se deve esperar que uma única nação regule essas tecnologias. Suponha que o Brasil proíba armas autônomas e bebês geneticamente modificados. De que isso adiantaria se os Estados Unidos produzirem robôs assassinos e os engenheiros chineses fizerem humanos geneticamente aperfeiçoados? A consequência seria que o Brasil se sentiria tentado a quebrar a própria proibição para não ficar para trás.

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O liberalismo está em crise com a ascensão de políticos populistas. Qual a gravidade dessa ameaça? A democracia liberal como a conhecemos no século XX não consegue sobreviver por muito mais tempo. Mas é possível reinventá-la e adaptá-la ao novo contexto do século XXI. A grande vantagem do liberalismo é sua flexibilidade, seu desapego a dogmas. Esse modelo já experimentou vários ciclos de crise e de regeneração. Se você acha que o liberalismo está em crise agora, pense na situação que ele enfrentou com a I Guerra Mundial, com o nazifascismo e com o comunismo. Há, portanto, uma boa chance de que o liberalismo se recomponha.

O senhor argumenta que a inteligência artificial poderá introduzir novas formas de preconceito. Como isso se daria? No passado, tínhamos de lidar com a discriminação coletiva contra categorias inteiras, como as mulheres, os gays e os negros. Em breve, porém, teremos de lidar com a discriminação individual, não mais coletiva. Será o preconceito com base em dados coletados sobre cada pessoa — informações que podem revelar que alguém é péssimo em matemática, ou um mau vizinho, ou mais preguiçoso que a média. Bancos e outras corporações já estão usando algoritmos para analisar dados pessoais para só então tomar decisões que nos afetam. Quando se solicita um empréstimo, é provável que seu analista seja uma IA. O algoritmo analisa dados como seu histórico de pagamento, seu grau de escolaridade e até a frequência de uso de seu plano de saúde para saber se você é confiável. Muitas vezes, o robô faz um trabalho melhor do que o funcionário de carne e osso. O problema é que, quando o algoritmo discrimina alguém injustamente, é difícil detectar isso. Se o banco se recusa a lhe conceder um empréstimo e você pergunta por quê, a resposta é “o algoritmo negou”. Aí você retruca: “Por que o algoritmo disse não?”. Ao que eles respondem: “Não sabemos”. Nenhum funcionário entende o algoritmo porque ele é baseado no que se chama de aprendizado de máquina avançado. Quando as pessoas discriminam grupos inteiros, esses coletivos se unem, se organizam e protestam. Mas e se o preconceito tem origem em um algoritmo que pode discriminar um único indivíduo não por ser mulher, gay ou negro mas apenas por ser quem é?

Como ocupar as massas que ficarão desempregadas no futuro por causa da automação? Os políticos estão demorando para reagir a essa crise iminente. A falta de empregos atingirá o mundo todo e — aqui me repito — não pode ser resolvida por nenhum governo isoladamente. Nas próximas décadas, a IA, a impressão 3D e outras inovações automatizarão centenas de milhões de tarefas humanas. Ao mesmo tempo, vão aparecer novos tipos de emprego e novas fontes de riqueza. No entanto, o problema central é que a divisão de perdas e ganhos não será isonômica. Haverá mais oportunidades, por exemplo, para engenheiros de soft­ware americanos, mas menos para trabalhadores da indústria têxtil e motoristas de caminhão, especialmente em nações pobres como Honduras. Pergunto-me: numa economia globalizada, o governo americano aceitará aumentar os impostos sobre os gigantes da alta tecnologia com a meta de apoiar e treinar hondurenhos desempregados em consequência justamente da operação dessas empresas americanas? É muito improvável. Hoje temos um cenário econômico global, mas as políticas ainda são extremamente nacionalistas. A menos que encontremos soluções para o todo, as rupturas causadas pela IA devem levar países inteiros ao colapso, resultando em ondas de caos e violência.

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O senhor examina quanto nossa vida social é baseada em mentiras e invenções potencialmente danosas. Em um mundo cada vez mais virtual, o que é real em nossa sociedade? É necessário separar as histórias fictícias que sempre sustentaram as civilizações das mentiras descaradas, como as hoje chamadas fake news. Por exemplo, se você disser que “o Brasil já foi colônia de Portugal”, isso fará parecer que o Brasil e Portugal são coisas reais. Se disser que “há mais cristãos do que muçulmanos no mundo”, fará parecer que o cristianismo e o islamismo são reais. Ou, se disser que “a Amazon ganhou mais dólares no ano passado do que a Toyota”, fará parecer que a Amazon, a Toyota e os dólares são também reais. Essas afirmações não constituem fake news, mas, no limite, são todas ficções, pois nações, religiões, corporações e dinheiro são entidades que existem apenas na imaginação humana. Tais ficções podem ser úteis. O problema é quando as pessoas esquecem que essas são histórias imaginárias e começam a acreditar que estão diante da realidade absoluta. Por exemplo, em meu país natal, Israel, os israelenses causam sofrimento aos palestinos, justificando-se com noções fictícias sobre a “nação eterna” ou o “direito divino do povo judeu”. Não precisamos eliminar todas as ficções, mas nunca devemos ser tentados a prejudicar seres reais em prol de uma entidade fictícia. Como saber o que é real? O melhor teste que posso oferecer é o do sofrimento. Uma nação não pode sofrer, mesmo que perca uma guerra. Uma corporação não sente dor ao falir. Por contraste, quando um soldado é ferido, ele sente dor. Quando um trabalhador perde o emprego, ele sofre. Humanos são as entidades reais.


O que ele pensa

As ideias de Harari sobre algumas das mais discutidas questões contemporâneas

Diversidade sexual
“Quando eu tinha 21 anos, finalmente constatei que era gay, após viver vários anos em negação. Agora imagine como será essa situação em 2050, quando um algoritmo for capaz de dizer a todo adolescente exatamente onde ele está no espectro gay/hétero”

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Privacidade digital
“Quando os algoritmos me conhecerem melhor do que eu mesmo, a autoridade passará das pessoas para os sistemas de big data. Existe a possibilidade de uma completa vigilância da humanidade”

Ambientalismo
“Sou vegano e tento evitar produtos animais, mas não tenho a menor ilusão de que posso convencer bilhões de outras pessoas a desistir completamente de carne e leite”

Racismo e xenofobia
“Sociedades distintas adotam diferentes tipos de hierarquia imaginária. A raça é muito importante para os americanos modernos, mas foi relativamente insignificante para os muçulmanos medievais. A casta era uma questão de vida ou morte na Índia medieval, enquanto na Europa moderna é praticamente inexistente”

Discursos autoritários
“Não acho que Trump possa empurrar as mulheres de volta para a cozinha ou mandar os gays de volta para o armário. Meu grande medo é a ascensão do nacionalismo, algo que impediria as sociedades de enfrentar os desafios reais que existem neste século”

(Arte/VEJA)

Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2018, edição nº 2597

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