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Terra de ninguém

Redes sociais são território do vale-tudo na campanha presidencial: havia até um plano da Cambridge Analytica para manipular o voto dos brasileiros

Por Laryssa Borges, Gabriel Castro, Eduardo Gonçalves e André Lopes
Atualizado em 4 jun 2024, 17h29 - Publicado em 31 ago 2018, 07h00

Desde a eleição de Barack Obama, em 2008, considerada a primeira campanha presidencial bem-sucedida na internet, cristaliza-se entre marqueteiros a ideia de que as redes sociais são o novo e principal palco da disputa eleitoral. A tese ganhou mais força com a fulminante ascensão de Donald Trump em 2016. Credita-se sua vitória a um conjunto de ações digitais exitosas e ao mesmo tempo controversas, como a criação de perfis falsos, o uso de robôs para multiplicar comentários, a difusão de fake news e o trabalho de um exército de hackers para atacar adversários. O FBI, a polícia federal americana, investiga outro fator que pode ter levado à consagração de Trump: a atuação de uma empresa inglesa de marketing político, a Cambridge Analytica, que manipulou ilegalmente dados de 87 milhões de usuários do Facebook.

A mesma nuvem turva que pairou sobre a eleição americana chegou ao Brasil, com seu rastro de artimanhas e ilegalidades concebidas para ludibriar o eleitor. As redes sociais são a um só tempo a solução e o problema. No território considerado sem lei da internet, apesar dos esforços de legislar sobre o ambiente digital, tem valido de tudo um pouco. As tentativas de enganar os eleitores envolvem marqueteiros, partidos e núcleos às vezes clandestinos das campanhas dos principais candidatos à Presidência, como se pode constatar na leitura das reportagens que vêm a seguir. Nelas, VEJA narra casos obscuros, que oscilam entre a malandragem e o crime previsto em lei, incluindo um plano da mesma Cambridge Analytica, já abortado, destinado a manipular o voto dos brasileiros.

A cambridge e os dados de 77 milhões de brasileiros

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(Arte/VEJA)

Uma investigação sigilosa colheu evidências de que a Cambridge Analytica tinha um plano para interferir ilegalmente nas eleições presidenciais de outubro. Só que, em vez de usar dados de usuários do Facebook, como fez nos Estados Unidos, o alvo do ataque no Brasil eram três dos maiores bancos de dados do país — o INSS, o Bolsa Família e o Poupatempo, de São Paulo. Juntos, eles reúnem cerca de 77 milhões de cadastros de brasileiros de todos os níveis sociais, de todas as idades e de praticamente todos os cantos do país. Na prática, essas informações, quando acessadas, funcionam como uma vantagem competitiva, ao permitir que um candidato consiga identificar demandas de grupos específicos de eleitores e, em seguida, bombardeá-­los com mensagens que prometem exatamente aquilo que eles mais desejam. É o mapa da mina. Com ele, o candidato promete ajuda ao idoso endividado para que saia do vermelho. Ao trabalhador de baixa renda pendurado num financiamento habitacional, oferece uma mão para comprar a casa própria. E assim por diante.

O Ministério Público do Distrito Federal decidiu investigar o caso depois do escândalo mundial sobre a atuação criminosa da Cambridge Analytica, que levou a empresa a decretar falência no início do ano. Como o publicitário André Torretta era o sócio brasileiro da Cambridge, os promotores o intimaram a prestar depoimento e puxaram o fio da meada. Enquanto nos Estados Unidos os métodos de coleta de dados confidenciais envolviam a aplicação de um teste de personalidade via Facebook, em que informações pessoais eram drenadas para a Cambridge, no Brasil o plano consistia em violar bancos de dados da administração pública extraindo informações pessoais. A investigação não sabe, até o momento, qual seria o método: ou violação direta dos bancos de dados, ou suborno a alguém para que o fizesse, ou, ainda, a compra desses dados que circulam no mercado negro. O que os investigadores sabem é que a Cambridge e André Torretta planejavam obter — e não descartam que obtiveram — ilegalmente cadastros de beneficiários do Bolsa Família, informações de aposentados e pensionistas do INSS e o acervo do Poupatempo, um serviço do Estado de São Paulo por onde passam registros de antecedentes criminais, processos e reclamações de clientes, contas de água e luz (com endereços atualizados) e detalhes de beneficiários de programas habitacionais.

Com as informações conseguidas nesses bancos oficiais, o plano era cruzá-las com dados obtidos legalmente, como cadastros de inadimplentes e hábitos publicados pelos usuários de internet em plataformas como Facebook e Instagram. O resultado seria um mapeamento poderoso de eleitores agrupados em determinados perfis. Em seguida, cada fatia do eleitorado seria bombardeada, nos celulares ou em anúncios em redes sociais, com mensagens eleitorais on demand. Ou seja: talhadas na medida do interesse dos eleitores-alvo.

Desde o início de 2016, André Torretta e o então diretor-gerente da Cambridge, Mark Turnbull, planejavam vender no Brasil o método aplicado lá fora. Foi apreendido um plano em que os dois discutem, passo a passo, quais dados precisariam obter, quanto poderiam cobrar pelos serviços e como definir as tarefas de cada um na empreitada. Batizado de “Eleições no Brasil”, o plano foi debatido em Londres em uma reunião entre os dois publicitários. Em um quadro-negro, Torretta e Turnbull escreveram as possibilidades de orçamento. De candidatos a deputado federal, por exemplo, poderiam cobrar — por um serviço não especificado no esboço — 250 000 libras, o equivalente a 1,3 milhão de reais.

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No mesmo quadro, cuja imagem está em posse dos investigadores, Torretta e Turnbull desenharam uma espécie de linha do tempo que previa atuação nas eleições gerais de outubro e nas disputas municipais de 2020. Pelas anotações, o SCL Group, controlador da Cambridge Analytica, ficaria responsável pela parte classificada como “criativa” da campanha. A fatia operacional seria tocada pela CA Ponte, empresa de marketing de Torretta. No projeto dos sócios, havia menções de replicar o método da Cambridge Analytica não só no Brasil mas no México e na Costa Rica. O último país, no entanto, foi descartado porque Turnbull e Torretta consideraram que não havia tempo suficiente para montar a estrutura necessária.

A investigação do Ministério Público ainda tenta desvendar o significado de mensagens atribuídas a Turnbull e Torretta, como uma em que um sócio questiona o outro: “Por que você tirou 2 milhões do orçamento?”. No ano passado, Torretta e representantes da Cambridge tentaram vender seu projeto ao maior número possível de políticos. Fizeram uma rodada de apresentações do método Cambridge no Congresso Nacional — sem contar, naturalmente, o pedaço subterrâneo e ilegal do processo. Em depoimento, Torretta disse que o serviço foi oferecido ao atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), e ao governador da Bahia, Rui Costa (PT), que é candidato à reeleição. Torretta também se encontrou com pelo menos quatro candidatos à Presidência da República ou com prepostos deles: Lula (PT), Geraldo Alckmin (PSDB), Jair Bolsonaro (PSL) e Henrique Meirelles (MDB). Com Bolsonaro, os encontros foram no escritório do próprio Torretta em São Paulo. A abordagem ao staff de Geraldo Alckmin ocorreu por meio do presidente do Instituto Teotônio Vilela, o ex-deputado José Aníbal. No caso de Henrique Meirelles, as negociações se prolongaram até junho deste ano. Com Lula, houve uma conversa — tudo segundo Torretta — em setembro do ano passado, antes da prisão do petista. Apesar de a empresa inglesa ter a eleição de Donald Trump como cartão de visita, o marqueteiro encontrou dificuldade para convencer o mundo político brasileiro da eficácia do método. “Eu vendo que tenho o pessoal do Trump e tenho a tecnologia. Eles pedem para explicar a tecnologia e não entendem”, disse o publicitário a interlocutores.

Ressalve-se: até o momento, não há indícios de que os políticos procurados soubessem que o serviço oferecido previa a compra ilegal de informações constantes de bancos de dados oficiais. Torretta já prestou cerca de vinte horas de depoimento aos investigadores em duas rodadas, uma em março, a outra em abril. Em ambas, negou que ele próprio tivesse conhecimento dos métodos criminosos da Cambridge Analytica ou que tivesse replicado no Brasil o modus operandi que a empresa utilizou na eleição de Trump. A pessoas próximas, no entanto, Torretta não descartou a possibilidade de que a empresa estivesse mesmo pronta para comprar ilegalmente dados de bancos oficiais e manipular a eleição. Numa de suas conversas, ele chegou a dizer o seguinte, referindo-se ao antigo parceiro Turnbull: “O cara queria ser meu sócio, vem de executiva, paga uísque e não me dá o método de trabalho? Eu não sabia o porquê, hoje eu sei. Eles são bons, mas erraram na parte moral”.

Ex-assistente de Torretta, Bruna Buonafina, que participou das reuniões de negócios na condição de tradutora, prestou depoimento no fim de agosto. A VEJA, ela não quis comentar o caso Cambridge nem revelar o teor de suas declarações. O Ministério Público informou que as investigações ainda estão em andamento, devem ser concluídas em breve, mas estão sob sigilo. Torretta é investigado por associação criminosa e violação de informações protegidas por segredo, delitos passíveis de pena de até doze anos de prisão. A assessoria do presidenciável Henrique Meirelles, o ex-­presidente do PSDB José Aníbal e o deputado Rodrigo Maia confirmaram os encontros com Torretta, mas garantem que as conversas foram genéricas e que não foi fechado nenhum contrato para prestação de serviços. O candidato Jair Bolsonaro, a assessoria do PT e o governador Rui Costa não atenderam aos pedidos de entrevista.

Alckmin e os “apoiadores” remunerados

Terra de ninguém – Geraldo Alckmin
BATALHÃO – O tucano Geraldo Alckmin, em campanha: 2 000 reais para os “militantes” militarem nas redes sociais (Ciete Silverio/VEJA)
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Em 21 de agosto, a página no Facebook do candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin, divulgou uma foto em que o tucano aparece sorridente entregando casas populares. Empolgada, uma seguidora comentou: “Aqui em SP realizou o sonho de tanta gente, e tenho certeza que realizará mais sonhos pelo Brasil afora como Presidente!!”. Posteriormente, o ex-governador de São Paulo respondeu, com toda a gentileza: “Obrigado pelo apoio e confiança, Ana!”. Ana está entre os internautas mais ativos dos posts relacionados ao tucano. Nas redes sociais, ela assina como Ana Moraes, ou Ana Serni, ou Ana Ponzetta. As três Anas são, na verdade, a mesma pessoa, que integra uma claque virtual contratada para elogiar o tucano e, dependendo da necessidade, atacar os concorrentes. A meta é óbvia: tirar o candidato do quarto lugar nas pesquisas eleitorais.

VEJA descobriu que, assim como Ana, há apoiadores de Alckmin nas redes que são militantes pagos. Trata-­se de um batalhão arregimentado pela campanha do candidato, que recebe missões específicas, cumpre metas de serviço e é remunerado no fim de cada mês por depósitos em caixas eletrônicos. O processo se dá de tal forma que não fica rastro da identidade dos financiadores. Os contratados trabalham em casa, as comunicações ocorrem por meio de um grupo de WhastApp e a orientação é para que tudo seja feito com a máxima discrição.

Sob a condição de manterem sua identidade no anonimato, dois “militantes” tucanos contaram a VEJA detalhes de como funciona a ação digital clandestina. Para ganharem um salário de 2 000 reais, os “apoiadores” têm de publicar no mínimo 100 comentários por dia, no Facebook, Twitter, Instagram ou em sites jornalísticos. Na execução do plano, misturam-se perfis reais e falsos para despistar o eleitor — um deles, que assina como “Ali Assis”, usou por muito tempo a fotografia de uma modelo russa. Entre os campeões de postagens em favor de Alckmin está Márcia Cândido Cruvinel. São mais de 5 000 ocorrências no Google ligando o nome dela ao do tucano. Ela existe de verdade. Em seu Instagram pessoal, que não pode ser acessado publicamente, Márcia jamais fez menção alguma a Alckmin ou ao PSDB, como era de esperar de uma eleitora empolgada. Mas nas redes sociais, em troca de uma remuneração mensal, ela é um talibã tucano.

O responsável pela operação é o publicitário Marcelo Vitorino, contratado pelo PSDB em abril para coordenar as ações nas redes sociais de Alckmin. Desde a semana passada, quando começou oficialmente a campanha, Vitorino foi alçado ao posto de coordenador de mobilização digital. Sua equipe exige que, além de fazer 100 posts diários, cada contratado preencha uma planilha com um link dos comentários. Também estabelece quais hashtags serão usadas — de #geraldopresidente a #mudarpramelhor — e dá o conteúdo que deve ser difundido, quase sempre na linha “Ele é o melhor candidato. Vai decolar na hora certa”. As instruções são passadas por WhatsApp por meio de um grupo administrado por Natália Mendonça, sócia de Vitorino.

A ação desses “apoiadores” é proibida. O eleitor não pode ser remunerado em hipótese alguma, nem para fazer elogios. Em tese, a prática pode configurar abuso de poder e levar até à cassação da chapa. O PSDB nega que tenha contratado militância “para atacar ou denegrir” a imagem de quem quer que seja. Vitorino disse que não conhece os personagens citados. Depois dessa resposta, uma funcionária da agência do publicitário ligou para os “apoiadores” para perguntar se algum deles havia conversado com repórteres de VEJA.

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Elogia que o PT paga

Terra de ninguém – Fernando Haddad
COMPRA –  Haddad: o candidato de Lula foi um dos beneficiados pelos posts encomendados pela Follow (Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Revelações recentes no universo das redes sociais confirmaram o que todo mundo já desconfiava (nem todo elogio postado nelas é sincero) e mostraram o que poucos sabiam: mesmo falsos, alguns elogios podem dar lucro — mais especificamente, até 2 000 reais por mês. A história veio à tona no domingo 26, quando a jornalista Paula Holanda contou como foi enganada pela Follow, uma agência de marketing digital, de propriedade do deputado petista Miguel Corrêa. Com 6 800 seguidores no Twitter, Paula relatou ter sido procurada por uma empresa intermediária da Follow para escrever posts pagos sobre as “minorias e causas que precisam ser discutidas”. Aceitou a oferta, porque achou que não havia mal em ganhar dinheiro com algo que já fazia de graça: defender pautas de esquerda.

Inicialmente, a agência colocou Paula em um grupo de WhatsApp que instruía seus membros a fazer postagens favoráveis a Gleisi Hoffmann, presidente do PT, e Luiz Marinho, candidato ao governo de São Paulo. Paula aceitou. Mas, quando vieram solicitações para que elogiasse o candidato do PT ao governo do Piauí, Wellington Dias, a jornalista, moradora de Salvador, achou estranho e passou a pedir explicações aos administradores do grupo, que terminaram por excluí-la. Desapontada, ela resolveu contar a história no Twitter.

Ao contratar influenciadores para fazer propaganda de candidatos disfarçada de elogios espontâneos, a Follow atropelou o artigo 57 da lei eleitoral, que diz: “É vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos”. Ou seja: pagar para que o conteúdo atinja mais gente — seja “impulsionado”, no idioma digital — pode. Mas pagar por propaganda dissimulada, não. Entre os beneficiados pela ação ilegal da Follow, além de Gleisi, Marinho e Wellington Dias, estavam o candidato-presidiário Lula, seu vice, Fernando Haddad, Dilma Rousseff e Lindbergh Farias.

A pena prevista para esse tipo de delito varia de multa a cassação do mandato — mas, para que seja aplicada, é preciso que se comprove que o candidato encomendou o serviço ilegal. O PT negou que tivesse contratado a Follow, e seu proprietário, o deputado Miguel Corrêa, negou que tivesse remunerado influenciadores para fazer propaganda para petistas, apesar da denúncia da jornalista e de um conjunto de evidências que aponta na direção contrária.

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VEJA teve acesso a três e-mails enviados a uma influenciadora pela Follow e pela Lajoy, uma empresa parceira. Neles, dois funcionários das agências dizem que ela deve postar “notícias sobre a esquerda brasileira, como Lula, Manuela e Haddad”, e “críticas ao governo e à direita”. Em troca, comprometem-se a pagar-lhe 2 000 reais todo dia 25, até o fim das eleições. Nos e-mails, os funcionários da Follow orientam a influenciadora a fazer com que os posts pareçam espontâneos: “Não sinalize publicidade para não perdemos o tom orgânico que é estratégico para a campanha”. A influenciadora, que pediu para não ser identificada, diz ter se recusado a trabalhar para a agência ao se inteirar dos objetivos da ação.

Indícios mais explícitos da natureza desses objetivos foram espalhados nas redes sociais por Breno Nolasco, funcionário da Follow e ex-assessor de gabinete do deputado Corrêa. Sem se preocupar com o vazamento da iniciativa ilegal, ele pôs no ar dois vídeos com orientações sobre o pagamento a potenciais interessados em fazer elogios pagos a candidatos petistas. “Em dois dias, nós vamos enviar (por WhatsApp) o link para o preenchimento do formulário bancário. A partir de agora, vai ser semanal. Eles vão pagar o mês inteiro de agosto. E, em setembro, começa a ser por semana”, explica. Os influenciadores também são informados de que, para receber os pagamentos, precisam cumprir metas diárias de postagem. O Ministério Público abriu investigação sobre o caso e já pediu à Justiça a quebra do sigilo fiscal dos envolvidos.

Os robôs a serviço de Ciro no WhatsApp

Terra de ninguém – Ciro Gomes
ATALHO – Hackers se aproveitaram de uma brecha no aplicativo para instalar o bot a favor do candidato do PDT (Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo)

Com a ajuda de ferramentas de compilação de dados digitais (big data, no termo em inglês), a exemplo da Twitter Audit, e consultas a especialistas na área, como o Instituto InternetLabs, a reportagem de VEJA flagrou o uso de bots na promoção da candidatura de Ciro Gomes (PDT). Bots são os robôs que publicam posts automaticamente nas redes sociais. Ciro não foi o único a usar o recurso — Marina Silva (Rede) e Bolsonaro (PSL) também lançaram mão da artimanha, embora em dimensão muito menor, se comparada à do pedetista. Ao longo do mês de julho, um grupo ligado à coordenação da campanha de Ciro usou um bot para divulgar notícias, organizar reuniões e trocar informações com possíveis eleitores, sempre por meio do WhatsApp — e antes do início oficial da campanha. A tática aproveitou-se de uma falha na segurança do aplicativo de troca de mensagens. O grupo, denominado Todos com Ciro, conseguiu hackear uma função ainda em teste do programa, que permite criar um software de inteligência artificial para responder a perguntas de forma automatizada. O recurso faz parte de uma versão do aplicativo que está disponível somente para uma seleção de empresas, o que, naturalmente, não inclui políticos.

Terra de ninguém
NO ZAP! – A tela recebida pelos usuários cadastrados (WhatsApp/Reprodução)
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A desconfiança em relação à estratégia do Todos com Ciro teve início há duas semanas, durante uma reunião de assessores de campanha dos presidenciáveis na sede brasileira do Facebook, em São Paulo — o Facebook é dono do WhatsApp. No encontro, profissionais de marketing contrários ao PDT questionaram o uso do bot que promovia o candidato na plataforma. Como o Facebook não liberara nada oficialmente, descobriu-se uma ação de hackers que se aproveitaram da brecha do aplicativo. Aproveitar-se das fragilidades de uma rede social para impulsionar na marra um lote de mensagens não é ilegal, apesar de ferir os termos de contrato da própria plataforma, que prevê banimento das contas que adotam tal prática.

VEJA chegou a dois personagens do grupo Todos com Ciro ligados ao bot — o engenheiro Germano Johansson, responsável pela programação, e Leonardo Bijos, da coordenação da Juventude Socialista do PDT em Brasília. Numa primeira ligação telefônica, anônima, como se um cidadão comum demonstrasse interesse pelo uso do recurso, Johansson explicou que o Facebook estava dificultando a campanha via WhatsApp e, por isso, o bot fora desativado. Até o fechamento desta edição, contudo, uma mensagem direcionando para o site de apoio ao pedetista ainda era enviada para quem interagisse com a conta no aplicativo. Quando a reportagem voltou a ligar para o engenheiro Johansson, agora se identificando, sua resposta ao repórter André Lopes foi outra: “Não temos ligação direta com a campanha, somos apenas um grupo de apoio. Não fizemos divulgação do PDT, mas de atividades de militância. Logo, não há pré-campanha”. Leonardo Bijos evitou o assunto e remeteu a conversa para William Rodrigues, presidente da Juventude Socialista do PDT. Rodrigues, por sua vez, negou envolvimento direto com o Todos com Ciro, apesar de admitir que poderia, sim, haver membros do PDT no meio do esquema digital. Em outros casos, fora de eleições, o Facebook baniu os usuários que apelaram aos envios mecânicos de mensagens. No caso do PDT, houve apenas notificação.

Pode haver punição do TSE? Dificilmente. Apesar de evidentemente atuar em parceria com o PDT, o grupo Todos com Ciro tem se resguardado em suas ações on-line. O site que reúne as informações foi registrado fora do Brasil e sua localização está camuflada por uma empresa americana especializada em manter seus clientes no anonimato na internet. Se o mecanismo do Todos com Ciro estivesse registrado no Brasil, aí sim poderia haver ilegalidade passível de punição. Diz o advogado Gustavo Guedes, especialista em direito eleitoral: “Se fosse comprovada a ligação com o PDT, haveria enquadramento como pré-campanha eleitoral, o que é irregular, e somente se o conteúdo compartilhado pedisse voto direto para Ciro”. Não foi o que aconteceu. A saraivada artificial de mensagens cita Ciro, trata das ideias de Ciro, navega ao redor dos temas da predileção do ex-ministro, mas não pede abertamente voto em Ciro para presidente.

A onda de seguidores-fantasma

Uma prática comum a quase todos os candidatos é o uso de perfis falsos no Twitter, truque para inflar o número de seguidores. No levantamento realizado por VEJA com ferramentas que vasculham as redes, constatou-se que, entre todos os concorrentes, Alvaro Dias (Podemos), Geraldo Alckmin (PSDB) e Marina Silva (Rede) lideram a corrida dos seguidores falsos no Twitter. A parcela de contas fraudulentas entre os 353 000 seguidores do candidato do Podemos é de 46%. Do tucano, são 32% de fantasmas. A de Marina, 31% (veja no quadro abaixo). Muitos desses perfis são alimentados por bots instalados em países como Índia, Camboja e Vietnã. Não é possível, contudo, saber se a falsidade foi promovida diretamente pela coordenação das campanhas ou se nasceu das mãos de fãs. Há outro problema na condenação da esperteza: como a sociedade anda sempre mais rápido que a lei, não existe jurisprudência para enquadrar o truque em qualquer crime eleitoral.

Mas pega mal, evidentemente, apelar para táticas sujas. Nos últimos três meses, assustados com a repercussão negativa do estratagema, que começou a despontar com muita evidência, os presidenciáveis passaram a encolher seus exércitos sem rosto. Alvaro Dias, por exemplo, chegou a ter 64% de fakes — agora, lembremos, está com 46%. Alckmin tinha 46%. O encolhimento pode ser atribuído à combinação de dois fatores. Primeiro, houve a louvável ação do próprio Twitter, que em julho saiu apagando os perfis considerados falsos, apesar de a empresa jamais corroborar as informações que apontam para a existência deles. A iniciativa, porém, não explicaria o sumiço de alguns perfis mais recentes. Nesses casos, a única justificativa plausível é que alguém com acesso direto à conta dos presidenciáveis, com as informações de usuário e senha, tenha feito a limpeza. Ou seja: no submundo da internet, os próprios responsáveis pelas campanhas acharam ser hora de puxar o freio.  Supõe-se que as redes sociais sejam influentes em campanhas políticas, mas, como não há estudos que comprovem sua eficácia, um pouco de cautela estará sempre à mão. É difícil saber se as redes sociais são a nova televisão quando se trata de amealhar votos.

Colaboraram Nonato Viegas e Hugo Marques


Você está sendo vigiado

Terra de ninguém – Edward Snowden
ALERTA GERAL – Snowden: espionagem (Germano Lüders/VEJA)

Edward Snowden, analista de inteligência dos Estados Unidos, ganhou notoriedade há cinco anos ao implicar a Casa Branca em um escândalo de espionagem de proporção planetária. Na semana passada, Snowden falou por videoconferência no Fórum EXAME Segurança da Informação, realizado em São Paulo, e traçou um cenário preocupante. Segundo ele, a bisbilhotagem digital não é patrocinada apenas por governos. Há corporações que captam ininterruptamente informações sem o consentimento das pessoas. Em outras palavras, você pode estar sendo vigiado neste exato instante. Não é paranoia. Ao investigar a Cambridge Analytica, o Ministério Público soube que uma empresa brasileira desenvolveu uma tecnologia capaz de informar a localização de qualquer pessoa, em qualquer data, com margem de erro de apenas 1 metro. Ou seja, um simples clique revela, em tese, onde você esteve na primeira segunda-feira de agosto do ano passado, às 23h45, e por quanto tempo.

Usada com fins eleitorais, a ferramenta permitiria, por exemplo, identificar os pacientes de um hospital público e bombardeá-los com propostas de um candidato para resolver o problema do sistema de saúde — o mesmo método da Cambridge Analytica. Usada para fins de espionagem, as possibilidades são infinitas — e, em princípio, não é ilegal. Os telefones são capturados com o aval dos próprios usuários, que baixam aplicativos, quase sempre gratuitos, que escondem essa autorização de monitoramento no meio daqueles extensos contratos que quase ninguém lê. “A gente foi procurado por candidatos, inclusive a presidente, mas não trabalhamos para políticos”, diz André Ferraz, CEO da In Loco, que foi intimado pelo Ministério Público a depor. A empresa monitora 65 milhões de aparelhos, mas garante que usa a localização só para oferecer mensagens comerciais. Ferraz explica que, por decisão gerencial, o sistema descarta os dados pessoais. “Tecnicamente é muito fácil ter acesso a tudo — nome, número, e-mails, CPF —, mas fizemos a escolha de não chegar nem perto disso”, garante o executivo.

Marcelo Rocha


A batalha decisiva: TV versus internet

bolsonaro no JN
EM OUTRA TELA – Bolsonaro, no Jornal Nacional: aparecer na TV faz diferença hoje em dia? (Rede Globo/Divulgação)

O início da propaganda eleitoral na TV, desde a sexta 31, põe em foco a grande incógnita da campanha de 2018: a televisão continuará a influenciar o voto da maioria da população de maneira decisiva ou perdeu seu poder de fogo para a internet? A resposta é crucial para duas candidaturas em especial: a de Geraldo Alckmin (PSDB-SP) e a de Jair Bolsonaro (PSL-­RJ). O primeiro, que nas pesquisas de intenção de voto não consegue ultrapassar o dígito único, é dono de portentosos cinco minutos por bloco de propaganda, além de 434 inserções durante o período eleitoral, bônus resultante da aliança fechada com cinco partidos do Centrão. Já Bolsonaro, líder com cerca de 20% das intenções de voto no cenário sem Lula, disporá de míseros oito segundos na TV, encorpados apenas com os trinta segundos da cobertura diária que o Jornal Nacional, da Rede Globo, fará dos principais candidatos. Seu maior ativo, contudo, são as redes sociais, nas quais acumula mais de 9 milhões de seguidores no Twitter, Facebook e Instagram — um recorde entre os candidatos.

Para Alckmin, a TV é a única chance de virada. Diante do desempenho pífio na internet e da descrença crescente de aliados, ele precisa se fortalecer nos estados do Sudeste, o maior colégio eleitoral do país, para conseguir se cacifar como destinatário do voto útil de quem não quer a vitória de Fernando Haddad (PT-SP) ou Bolsonaro. O petista, que substituirá a titularidade na chapa presidencial quando Lula for declarado inelegível, briga por um bilhete para o segundo turno. Os cerca de 40% de intenções de voto atribuídos a Lula autorizam o otimismo de sua campanha. Alguns analistas acreditam que Haddad pode herdar mais da metade desse contingente. Com essa possibilidade, o único caminho que resta a Alckmin é tentar desidratar Bolsonaro para conseguir concorrer contra o PT. Sua equipe aposta que a altíssima rejeição a Bolsonaro — chega a 39%, a maior entre todos os candidatos — possa redirecionar para o tucano os votos dos eleitores receosos da volta do PT ao poder.

Daí por que a TV vai ter um papel decisivo. Segundo dados do Ibope, 62% dos brasileiros ainda recorrem às telas de TV para obter notícias sobre os candidatos. As redes sociais e os blogs, conforme o levantamento, são o caminho escolhido por apenas 26% dos entrevistados. “As estruturas tradicionais continuam importantes: alianças para poder governar, tempo de TV para se comunicar e dinheiro para fazer campanha”, afirma a CEO do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari. Carlos Manhanelli, presidente da Associação Brasileira de Consultores Políticos, não hesita: se tivesse de escolher entre o tempo de TV de Alckmin e a força na internet de Bolsonaro, ficaria com a primeira opção. Para ele, todo candidato mira nos “indecisos conversíveis” e, nisso, a TV ainda é mais forte que o ambiente virtual.

Na primeira inserção televisiva, Alckmin concentrou esforços em atacar indiretamente o radicalismo de Bolsonaro com um vídeo que mostra uma bala destruindo um a um objetos que simbolizam os problemas do Brasil — até que acaba por acertar uma criança. As críticas ao deputado deverão ser moderadas, já que Alckmin não quer, na hipótese de ir para o segundo turno contra o PT, espantar completamente os bolsonaristas. Teme que, irritados, eles possam optar pelo voto nulo ou branco.

Mesmo assim, é inegável que a TV vem perdendo relevância para a internet. Marco Ruediger, diretor de políticas públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV), informa que um brasileiro, em média, consulta o celular 72 vezes por dia. “Quantas vezes as pessoas vão parar para ver uma propaganda eleitoral?”, questiona. Mas Ruediger afirma que TV e internet serão, nesta campanha, forças complementares. “É uma relação simbiótica. A TV vai gerar uma série de informações e elas vão reverberar nas redes sociais.”

Tudo somado, pode-se dizer que, a partir da sexta-feira, começa a batalha decisiva da campanha presidencial. Se a TV ainda for a rainha do pedaço, Alckmin poderá virar o jogo. Se as redes sociais roubaram esse protagonismo, Bolsonaro está com a estrada pavimentada.

Ana Clara Costa e Marcela Mattos

Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598

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