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Superatleta Mo Farah ilumina o drama da vergonhosa escravidão moderna

O ídolo revelou ter sido levado para o Reino Unido com nome e documentos falsos

Por Luiz Felipe Castro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h21 - Publicado em 24 jul 2022, 08h00

A arrancada final, a concentração e a força estampadas no rosto, para então explodir no sorriso inigualável, fizeram do fundista britânico Mo Farah um dos grandes atletas de nosso tempo — dono de quatro medalhas de ouro nos 5 000 e nos 10 000 metros na Olimpíada de Londres, em 2012, e na do Rio de Janeiro, em 2016, virou lenda viva, não por acaso feito cavaleiro pela rainha Elizabeth. Na semana passada, um comovente documentário exibido pela BBC revelou um segredo do campeão — e o fez ainda maior, dada a dimensão do que contou. Em suas próprias palavras, de voz tímida e pausada: “A verdade é que eu não sou quem você pensa. A maioria das pessoas me conhece como Mo Farah, mas isso não é verdade. Fui separado da minha mãe e trazido para o Reino Unido ilegalmente sob o nome de outro menino chamado Mohamed Farah”.

VITÓRIA - Campeão olímpico, em 2012 e 2016: ídolo britânico -
VITÓRIA - Campeão olímpico, em 2012 e 2016: ídolo britânico – (Jae C. Hong/Image Plus)

Nascido com o nome de Hussein Abdi Kahin na Somalilândia, enclave separatista ao norte da Somália, ele foi levado para o Reino Unido, no início dos anos 1990, e forçado a trabalhos domésticos. Salvou-o um professor de educação física que descobriu no garoto a habilidade para as corridas de longa distância. Ele conseguiu afastá-lo da mulher que o levara clandestinamente, e o resto é história. Até hoje, Mo Farah contava uma outra trajetória de vida, registrada em inúmeras biografias: dizia ter nascido em Mogadíscio, capital da Somália, em plena guerra civil, tendo desembarcado em Londres com a mãe e dois irmãos para se juntar ao pai, técnico de informática. Anunciada a bomba, a polícia do Reino Unido abriu investigação contra a cidadã que o acompanhou, e que os produtores da BBC não conseguiram localizar. O Ministério do Interior já anunciou que não fará movimento judicial algum contra Mo Farah por falsidade. Disse o prefeito trabalhista de Londres, Sadiq Khan, ele mesmo filho de imigrantes paquistaneses: “Devemos construir um futuro onde esse tipo de coisa não exista mais”.

As revelações do superatleta realimentaram uma das discussões mais acaloradas do Reino Unido — a política de linha dura contra os imigrantes ilegais. A ideia é criar um ambiente tão hostil aos irregulares, sem registros, e portanto sem chance de emprego nem acesso aos serviços de saúde, que a eles não reste outra saída a não ser o retorno a seu país de origem — estima-se que 700 000 pessoas vivam nesse limbo. Em junho, depois de acirrada guerra nos tribunais, a Justiça cancelou um voo entre Londres e Kigali, em Ruanda, que levaria a bordo uma leva de cidadãos sem lenço nem documento deportados. As autoridades do governo inglês foram acusadas de desumanidade e de irresponsabilidade. “Será que Ruanda é um país que respeita os direitos humanos, civis e políticos? Para nós a resposta é não”, diz Lewis Mudge, diretor da Human Rights Watch para a África Central.

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Não demorou para que, diante do segredo revelado por Mo Farah, se imaginasse qual seria seu destino, tivesse ele chegado ao Reino Unido agora em 2022. A resposta: o próximo voo para Ruanda. Ressalve-se que ele só conseguiu a documentação, há duas décadas, porque corria mais do que ninguém, era um esportista imbatível, havia um futuro claramente desenhado. Há milhares de outros Mo Farah por aí, sem chance alguma, parte deles como elo da sórdida engrenagem de um crime de nome incômodo e revelador: tráfico de pessoas. É problema global. Estima-se que 2,5 milhões de seres humanos sejam “vendidos” a cada ano, em sua grande maioria (80%) mulheres. Não por acaso, a exploração sexual está no topo das denúncias — e nesse quesito o Brasil tem lugar desonroso. Segundo a ONU, o número de crianças escravizadas cresce a cada ano. “Há mais casos de abuso nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, em decorrência da fragilidade socioeconômica”, afirma Lys Sobral Cardoso, procuradora do Ministério Público do Trabalho. “Meninas geralmente são vítimas de exploração doméstica e sexual, enquanto homens caem em falsas promessas de dignidade no setor rural.”

Louve-se, portanto, a coragem do menino somali, que é dois simultaneamente e que, ao revelar sua duplicidade, aos 39 anos, pode estar ajudando a controlar uma postura selvagem da humanidade. “A história de Mo Farah, sem dúvida, nos ajudará a aumentar a conscientização da urgente questão da escravidão moderna”, diz Andrew Smith, coordenador do movimento antiescravidão moderna do Wilberforce Institute, do Reino Unido. Por ora, e já é uma grandeza, vale a sensação íntima do ídolo: “Durante anos eu continuei bloqueando isso em minha mente. Mas você só pode bloquear por um tempo”.

Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799

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