Roqueiro acidental
Em autobiografia, Bruce Dickinson, cantor do Iron Maiden, foge ao estereótipo do metaleiro ogro: cultiva hábitos civilizados, como a literatura e a esgrima
Na tirada típica do Analista de Bagé, personagem de Luis Fernando Verissimo, o inglês Paul Bruce Dickinson seria um roqueiro “tão ortodoxo quanto receita de Biotônico Fontoura”. Aos 59 anos, o vocalista do sexteto inglês Iron Maiden, um dos símbolos do rock pesado mundial, fez do vocal estridente sua marca distintiva — o que lhe rendeu o apelido de “sirene de ataque aéreo humana”. A banda frequenta os clichês próprios de seu gênero musical: letras inspiradas em mitologia pagã e com certa fixação em monstros e demônios. As similaridades do cantor com o que existe de mais estereotipado no universo do heavy metal param por aqui. Longe dos holofotes, Dickinson destoa da figura do roqueiro ogro. Ele é um exímio esgrimista, que já disputou com profissionais do esporte. Também pilota aviões: chegou a trabalhar numa empresa aérea e comanda o Boeing Ed Force One (o nome faz referência a Eddie, caveira que atua como mascote do Iron Maiden) nas turnês internacionais de sua banda. Dickinson, por fim, é escritor diletante. Essa faceta de sua personalidade será mais bem apreciada pelo público brasileiro com Bruce Dickinson: uma Autobiografia, que a editora Intrínseca lança no país nesta semana (tradução de Jaime Biaggio; 320 páginas; 49,90 reais ou 34,90 na versão digital). É sua terceira aventura literária — as anteriores foram na ficção. Contos de terror, claro.
Informal no tom, o livro deixa no leitor a sensação de estar ouvindo Dickinson desfiar histórias em um pub inglês, entre um e outro caneco de cerveja. “Minha ideia foi usar uma linguagem simples, para me aproximar do leitor”, disse o cantor a VEJA. Com reserva britânica, Dickinson fala pouco da vida pessoal. Nada das façanhas sexuais que se esperam de um astro do rock. Há algumas indiscrições sobre colegas roqueiros: Ritchie Blackmore, guitarrista do Deep Purple e do Rainbow, bandas fundamentais do hard rock dos anos 70, usa um aplique de cabelos para disfarçar as entradas. Na entrevista, porém, Dickinson disse que isso não é propriamente uma revelação. “Vai me dizer que você não sabia?”, brinca.
O Brasil ocupa um pedaço importante na carreira do cantor. Foi o lugar em que o Iron Maiden tocou para os maiores públicos de sua história, nas edições do Rock in Rio de 1985 e 2001. Dickinson admite que pouco sabia do país quando aportou aqui pela primeira vez. No livro, as aventuras brasileiras são descritas com um certo tom imperial britânico. Os brasileiros são figuras exuberantes, mas demasiado sensíveis: incomodam-se quando um astro do heavy metal grita com eles. “Nós, anglo-saxões, somos mais sóbrios. Mas acho bonito um povo que, no trabalho, prefere a alegria aos gritos”, concede Dickinson.
Foi por estímulo de um professor que o adolescente Bruce Dickinson se iniciou na esgrima (era uma escola pública: o espadachim metaleiro jura que esgrima não é esporte de aristocratas empedernidos). A paixão por aviões nasceu antes, graças a um amigo próximo da família que fora aviador na II Guerra Mundial. As páginas sobre esgrima e aviões são mais apaixonadas e extensas do que aquelas dedicadas à gravação dos discos antológicos do grupo, como The Number of the Beast (1982) ou Powerslave (1984). O autor diz que é enfadonho falar do que se faz no estúdio. “Mas a paixão pela música está retornando. Estou em processo de composição de meu disco-solo”, afirma. Em maio, ele volta ao Brasil — para dar palestras sobre… empreendedorismo. Bruce Dickinson é um roqueiro acidental.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575