O velho e o marasmo
No arrastado '4321', Paul Auster sucumbe à intoxicante influência de Hemingway e prova que grandes romances americanos têm pouco a ver com romances grandes
É difícil encontrar um romancista americano que escape à angustiante influência de Ernest Hemingway, mesmo entre os que não veem problema em pegar carona nas modinhas do nosso tempo e encher as suas narrativas de truques pós-modernosos. É o caso evidente de Paul Auster. Desde os primeiros livros, o autor de A Trilogia de Nova York esperneia contra a sombra do mestre e luta para fazer o oposto simétrico do que pressupõe a cartilha do — atenção para o apelido — Papa Hemingway. Esse repúdio ao estilo de antecessores patriarcais foi chamado de daemonization pelo crítico literário Harold Bloom, que relacionou o ato à figura de linguagem “hipérbole”, expressão do exagero. Conclusão? Mais uma rebeliãozinha edipiana chega ao clímax com a publicação do novo romance de Auster.
Começando pelo tamanho, tudo é exagerado em 4321. A obsessão de deixar para a posteridade o grande romance americano fez com que Auster imaginasse quatro vidas distintas para um mesmo personagem, Archie Ferguson, baby boomer nova-iorquino que passa por múltiplos processos de amadurecimento enquanto o seu país reluta em amadurecer. O assassinato de Kennedy, a luta pelos direitos civis, a Guerra do Vietnã, tudo é acompanhado por um dos Ferguson, e é por isso que certos fatos históricos podem ser contaminados pelas realidades alternativas em que vive o protagonista. Com exceção desses momentos em que o pano de fundo histórico fica sozinho em cena, a leitura de 4321 vai aos poucos se transformando num teste de resistência. Para chegar à última página, é preciso vencer os infindáveis episódios em que o personagem se regala diante das mínimas coincidências para atribuir significados a um cotidiano que não faz muito sentido.
Os romances de Auster normalmente têm origem em questionamentos sobre o poder do acaso e da linguagem: e se eu tivesse outro nome no documento de identidade, a minha vida seria diferente? Obras mais vigorosas, como Leviatã e O Livro das Ilusões, dão verdade ficcional às possíveis respostas porque apostam na elipse e na sutileza, ou seja, ainda utilizam a Teoria do Iceberg de Hemingway, que pressupõe a omissão de certos detalhes — ainda mais se forem óbvios — para convocar o leitor à coautoria da obra. O gelo que vemos na superfície do oceano é o texto do qual se depreende a massa submersa. Em 4321, no entanto, Auster consegue a façanha de virar o iceberg de ponta-cabeça e inflacionar o relato com absolutamente todos os pormenores desnecessários que cercam a vida de Ferguson, ou melhor, as vidas, quatro, tornando as coisas mais lentas e redundantes.
Tudo no romance é quantificado com uma obviedade que afasta o leitor de qualquer contribuição criativa. Conhecemos as minúcias do primeiro namoro de Ferguson, inclusive o número de cartões-postais trocados durante o rompimento, depois conhecemos as minúcias do segundo namoro, e também do terceiro, sem que nada seja novo o bastante para fazer a história dar um passo à frente. Trata-se de um romance de formação em que o herói não aprende nada porque está ocupado demais com a lição de casa. De repente o leitor se dá conta de que as miudezas existenciais de mais três Ferguson devem preencher o resto do tijolo, que começa a pesar. Se o objetivo de Auster foi realçar, por meio da leitura, a morosidade de quatro cotidianos descritos em detalhes, então ele merece congratulações.
Existe a esperança de que a disposição das vidas paralelas de Ferguson preencha as entrelinhas de subentendidos capazes de conferir um valor mais robusto à obra — afinal de contas, por que alguém escreveria quatro versões do mesmo livro sem que elas se alimentassem mutuamente? A verdade, porém, é que 4321 forma um conjunto de vasos comunicantes que pouco dialogam entre si. Em mais uma molecagem contra a cartilha do Papa, Auster se vale de um narrador intruso que tudo sabe e tudo vê, que em vez de “mostrar” se limita à facilidade de “contar” as situações e que chega ao cúmulo de explicar, nas últimas páginas, a piada que abre o livro. É como se estivéssemos diante de um mau romance do século XIX, algo lastimável para um autor que já havia encontrado soluções mais gratificantes para o problema da angulação.
Não se pode dizer que uma daemonization como a de Auster contra a escola Hemingway seja de todo má, mas ele poderia ter aprendido com o autor de O Velho e o Mar que grandes romances americanos têm pouco a ver com romances americanos grandes.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591