O “S” é de salmonela
Gigante nacional gestado nos anos Lula, a BRF enfrenta crise: maus resultados nos negócios e denúncias de fraudes no controle de qualidade nos frigoríficos
Abilio Diniz é um dos nomes mais estrelados do empresariado brasileiro. Herdou o controle do Pão de Açúcar e conduziu a empresa familiar à liderança do varejo brasileiro. Comandou o grupo até 2013, quando se viu obrigado a entregar o controle ao sócio francês Casino. Naquele mesmo período, apareceu diante dele a oportunidade de se associar a outro gigante nacional: a BRF, dona de marcas tradicionais, como Sadia e Perdigão, e responsável por 40% das exportações de carne de aves do país. Além de sua participação acionária, Abilio Diniz foi indicado para assumir a presidência do conselho de administração. O convite partiu da Tarpon, uma empresa de investimentos que é a terceira maior acionista individual da BRF. O objetivo era transformá-la em uma “Ambev dos alimentos”. Parecia uma grande ideia. Mas não deu nada certo. Sob a liderança de Diniz e dos novos gestores escolhidos pela Tarpon, a BRF acumulou prejuízo de 1,5 bilhão de reais nos últimos dois anos. Não bastassem as dificuldades nos negócios, na semana passada a empresa foi chacoalhada por uma nova fase da Operação Carne Fraca, chamada de Trapaça. Entre os onze executivos detidos está o ex-presidente da BRF Pedro Faria, sócio da Tarpon e alçado ao cargo com o aval de Diniz.
Segundo a Polícia Federal, as áreas de análises laboratoriais de quatro fábricas da BRF falsificavam laudos para esconder problemas sanitários. As amostras de carne de aves examinadas continham níveis de contaminação por salmonela acima dos permitidos. A presença da bactéria em carnes, principalmente de frango, não é incomum, mas, dependendo do tipo e da concentração, pode haver riscos à saúde humana. No caso da BRF, a falsificação dos laudos era feita em lotes destinados à exportação, sobretudo para a Rússia, um dos mercados com regras mais severas. A investigação surgiu de um processo trabalhista movido por uma ex-funcionária de análises laboratoriais. Ela relatou pressões para fraudar amostras. Na denúncia, anexou e-mails e documentos de 2014 que comprovam que os resultados eram deliberadamente alterados para entrar no padrão exigido. Em uma das mensagens, ela diz: “Corremos o risco de sermos pegos na mentira”.
Em 2015, executivos da empresa, entre eles Pedro Faria, tomaram conhecimento do processo e das provas reunidas. Houve uma clara tentativa do setor jurídico de não permitir que os documentos viessem a público. Faria, copiado em alguns dos e-mails, respondeu: “É um absurdo! Impressionante como sempre levamos bucha dos mesmos lugares. Helio (vice-presidente) por favor avalie algo drástico por lá”. A PF interpretou isso como um pedido para abafar o caso, mas “avaliar algo drástico” também pode se referir a atitudes para corrigir os problemas sanitários reportados. Em nota, a BRF diz que as investigações não dizem respeito a “algo que possa causar dano à saúde pública” e que medidas técnicas e administrativas foram tomadas.
Antigos executivos da empresa afirmam, reservadamente, que a nova gestão, em sua busca frenética por corte de custos e resultados mais vistosos, acabou comprometendo a qualidade da operação. Mais de 150 diretores e gerentes experientes na área foram substituídos, em um curto espaço de tempo, por jovens com pouco conhecimento do negócio de aves. “Imagino que havia uma pressão para evitar perdas, então foi decidido manipular os exames e dar o destino errado para as amostras com salmonela”, diz um ex-diretor que atuou por duas décadas em empresas do grupo.
Antes do caso policial, a BRF já enfrentava uma crise de credibilidade (agora terá dias ainda mais difíceis pela frente). Trata-se de um resultado melancólico para um grupo empresarial que, no auge da euforia dos anos Lula, foi escolhido para ser um dos campeões nacionais. A fusão da Perdigão com a Sadia, abatida por apostas cambiais equivocadas na crise financeira de 2008, foi patrocinada pelo BNDES e pelos fundos de pensão Previ, do Banco do Brasil, e Petros, da Petrobras. Nascia ali a Brasil Foods, atual BRF. Dez anos depois, os fundos de pensão não andam nada felizes com os resultados (as ações da empresa perderam cerca de 60% de seu valor desde 2015), e a mudança de comando deve ser selada numa reunião marcada para 26 de abril. Abilio, ao que tudo indica, terá de encontrar outra empresa para liderar — quem sabe o Carrefour, seu antigo objeto de desejo.
Uma bactéria com 2 500 variedades
Os documentos interceptados pela operação da Polícia Federal apontaram a presença de salmonela em até 70% das amostras de carne de aves produzidas na unidade da BRF em Rio Verde, no Estado de Goiás. O limite permitido no país fica entre 20% e 23%. Por uma questão sanitária e para evitar a contaminação de outros alimentos, grande parte dos importadores é ainda menos tolerante, sendo que alguns, como a Europa, não aceitam nenhuma incidência de salmonela. Isso porque a bactéria causa desde diarreia e gastroenterite até infecções sistêmicas mais complicadas. Para eliminar os riscos, é preciso cozinhar, fritar ou assar as carnes. “Existem mais de 2 500 variedades de salmonela, e poucas foram profundamente estudadas. Não se sabe ao certo quais são os tipos inofensivos aos humanos”, diz Cristiano Moreira, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os frangos geralmente se contaminam pela ração ou pelo contato com o solo, e por isso a salmonela é comum no trato intestinal dos animais. A forma de evitar que passe para a carne é seguir os padrões sanitários adequados — algo não visto em certas unidades da BRF.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573