O porão ficava em Brasília
Documentos da CIA escancaram a participação do general Geisel em execuções de presos do regime, pondo em xeque sua imagem de “moderado”
Diante do silêncio das Forças Armadas sobre as violações da ditadura militar, o Brasil teve mais um capítulo de sua história contado por estrangeiros — americanos, no caso. No último dia 10, veio à tona um documento, público desde 2015 no site de um órgão do governo dos EUA, que relatava uma passagem até então inédita dos tempos de chumbo. Um memorando do chefe da CIA à época, William Colby, endereçado ao ex-secretário de Estado Henry Kissinger, com data de 11 de abril de 1974, reportava que o general Ernesto Geisel deu autorização para que o Exército continuasse sua política de assassinatos de opositores que se encontravam sob custódia do Estado. Até a divulgação do documento, historiadores suspeitavam, mas não tinham prova cabal da atuação direta de Geisel.
A descoberta foi feita pelo professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Matias Spektor. Informado sobre os documentos por um colega dos Estados Unidos que escreve um livro sobre a relação de Kissinger com a América Latina, Spektor leu o conteúdo e imediatamente o publicou em sua conta no Twitter. O memorando narra um encontro realizado no dia 30 de março de 1974, quinze dias depois de Geisel tomar posse. Estavam presentes, além do presidente, os generais Milton Tavares, prestes a deixar a chefia do Centro de Informações do Exército (CIE), seu sucessor no órgão, Confúcio de Paula Avelino, e o general João Baptista Figueiredo, que viria a suceder Geisel na Presidência.
Segundo o relato de Colby, Geisel foi informado por Tavares sobre a política de execução de opositores que integravam a luta armada e sobre o fato de 104 presos terem sido mortos pelo CIE em 1973. Tavares então alertou para a necessidade de manter o plano de extermínio. O apelo recebeu o apoio de Figueiredo, mas Geisel teria pedido para pensar no assunto durante o fim de semana. Pensou e terminou concordando, desde que só “perigosos subversivos” fossem assassinados, e que o general Figueiredo desse a última palavra sobre cada caso.
Como a CIA obteve acesso ao teor da conversa da alta cúpula, não se sabe. Mas pesquisadores do período já tinham indícios de que, apesar de conhecido como o “general da abertura”, Geisel não estava alheio ao que era feito nos porões da ditadura. Em 1999, o general Newton Cruz disse ao jornal O Globo que Tavares havia recebido “carta branca do Geisel para resolver o problema (da guerrilha do Araguaia) pelos seus métodos”, os quais eram “bem conhecidos no Exército”. Em 2003, o jornalista e escritor Elio Gaspari, o mais completo historiador do período militar, publicou, no livro A Ditadura Derrotada, um diálogo entre Geisel e o general Dale Coutinho, em que o presidente dizia: “Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”. Em outra passagem, o tenente-coronel Germano Pedrozo diz a Geisel que “tem elemento que não adianta deixar vivo, aprontando”. O presidente respondeu: “É. O que tem que fazer é que tem que, nessa hora, agir com inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”.
Spektor, autor da descoberta, acredita que o memorando reforça a tese de que o processo de abertura democrática iniciado com Geisel só foi possível depois do aval a práticas repressivas no começo de seu mandato. “O que Geisel viria a combater posteriormente no regime era a repressão desorganizada, que violava a hierarquia da cúpula do governo”, diz o pesquisador. Queria, portanto, pôr ordem na bagunça. Outros documentos da mesma leva liberada pela CIA reforçam essa análise. Um telegrama assinado pelo então embaixador americano em Brasília, John Crimmins, dois anos depois da posse de Geisel, sugere que o presidente pretendia, ao substituir Tavares no CIE, reduzir a autonomia do órgão. “Geisel foi o presidente mais ‘imperial’ do Brasil e não permitia ser desobedecido. Na hora em que as execuções começam a transbordar, ele entende que a estrutura de eliminação estava fora de controle”, diz a historiadora Heloisa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ao tomar conhecimento dos documentos, o governo partiu para a mistificação. O Itamaraty informou que pedirá aos Estados Unidos o envio de todos os arquivos produzidos pela CIA sobre a ditadura, como se uma agência secreta tivesse essa obrigação. As Forças Armadas, por sua vez, declararam que é impossível comprovar a veracidade dos fatos narrados pela CIA porque todos os documentos do período foram destruídos “de acordo com as normas existentes à época”. O único a defender a política de assassinatos foi o saudosista do regime e pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro. Ele disse que os documentos foram divulgados para atrapalhar sua candidatura (esqueceu-se de que estavam à disposição do público desde 2015) e minimizou as execuções sumárias nos seguintes termos: “Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece”.
A revelação ocorre num momento particularmente sensível, em que setores da sociedade brasileira julgam que um golpe militar e a volta da ditadura podem ser uma boa solução para o país. Em sua coluna, publicada nos principais jornais do país, Elio Gaspari fez um lembrete oportuno: “Para as vivandeiras e napoleões de hospício de hoje, o documento da CIA ensina que na ditadura praticaram-se crimes, e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme bagunça”.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583