O padrão Moro
Levantamento exclusivo mostra que a sentença contra Lula obedeceu aos mesmos critérios que o juiz tem adotado desde o início na Lava-Jato

Não fossem o seu caráter histórico, as 218 páginas de texto e as profusas 90 000 palavras que ela contém, a sentença proferida pelo juiz Sergio Moro contra o ex-presidente Lula seria, por sua forma e conteúdo, apenas uma decisão ordinária — mais uma condenação entre as 260 já anunciadas pelo magistrado desde o início da Lava-Jato. É o que mostra um levantamento produzido pelos pesquisadores Ivar Hartmann, Fernando Correia Jr., Leticia Carneiro, Maria Beatriz Gomes e Guilherme Passos, do projeto Supremo em Números, da FGV do Rio de Janeiro. A pedido de VEJA, eles analisaram ao longo de um mês, e com a ajuda de algoritmos, 1 590 decisões do magistrado tomadas nos últimos três anos, incluindo no pacote as 260 condenações. O resultado contraria o que dizem Lula e aliados — que a sentença do petista foi fruto de um julgamento “de exceção”. Os números da FGV mostram que a condenação de Lula obedeceu aos mesmíssimos critérios aplicados aos outros réus da Lava-Jato.
A pena determinada pelo juiz, por exemplo — de nove anos e seis meses de prisão —, não é mais frouxa nem mais rigorosa do que outras que ele proferiu ao longo das 41 fases da Lava-Jato. Está dentro do “padrão Moro”, tanto no caso do crime de corrupção passiva (5,83 anos é a média geral; seis anos foi o que coube a Lula) quanto no de lavagem de dinheiro (média geral: 4,53; caso de Lula: 3,5 anos). O mesmo se pode dizer do tempo decorrido entre a apresentação da denúncia pelo Ministério Público Federal e o anúncio da sentença: em média, correm 286,5 dias. Para Lula, passaram-se 295 dias. Em relação ao número total de anos de prisão por condenado, o do ex-presidente ficou, inclusive, abaixo da média, de 11,2 (veja o quadro na pág. 50).

O único ponto fora da curva — o tamanho do texto da sentença, o dobro da média, de 44 000 palavras — deve-se à decisão do juiz de rebater as acusações feitas contra ele por advogados do ex-presidente. A defesa de Lula chegou a pedir a suspeição de Moro, alegando que o magistrado estaria fazendo um julgamento político de seu cliente. Moro dedicou nada menos que 179 dos 962 tópicos do texto para negar as acusações. Disse o juiz em sua sentença: “Em síntese e tratando a questão de maneira muito objetiva, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não está sendo julgado por sua opinião política e também não se encontram em avaliação as políticas por ele adotadas durante o período de seu governo”. E completou: “Também não têm qualquer relevância suas eventuais pretensões futuras de participar de novas eleições ou assumir cargos públicos”.

A aplicação do padrão Moro na condenação de Lula aparece também na repetição de certos parágrafos — 137 deles são idênticos aos já utilizados pelo juiz em outros despachos ao longo da operação. Afirmações como “surgiram, porém, elementos probatórios de que o caso transcende a corrupção — e lavagem decorrente — de agentes da Petrobras, servindo o esquema criminoso para também corromper agentes políticos e financiar, com recursos provenientes do crime, partidos políticos” apareceram em 33 despachos passados, segundo levantamento da FGV. A repetição desse parágrafo em especial é uma forma usada pelo juiz para salientar que, embora muita água tenha rolado na Lava-Jato, a origem da investigação continua sendo a mesma: a descoberta do cartel das empreiteiras montado para fraudar contratos na Petrobras, nos idos de 2014.

Moro também repetiu com Lula seu entendimento reproduzido em outras 52 decisões sobre a autonomia de juízes para indeferir pedidos da defesa, como aqueles relacionados à produção de provas. O juiz justificou, assim, o fato de há menos de uma semana ter negado o pedido dos advogados de Lula para que novas provas fossem apresentadas, esclarecendo que a ação já corria em fase de alegações finais. O magistrado ainda usa outra marca registrada: como fez em outras 23 ocasiões durante a Lava-Jato, recorre a citações do juiz americano Stephen Trott para fundamentar o uso de delações premiadas como forma de chegar ao topo de um esquema criminoso. “Para pegar os chefes e desmantelar suas organizações, é necessário fazer com que os subordinados se virem contra os do topo. Sem isso, o grande peixe permanece livre, e a Justiça só alcança os pequenos”, diz Trott em seu artigo “O uso de um criminoso como testemunha: um problema especial”, citado por Moro.
O levantamento dos pesquisadores da FGV traz ainda importantes conclusões sobre o trabalho da Lava-Jato. O crime de lavagem de dinheiro motivou, de longe, o maior número de anos de prisão nas condenações. Foram 462,5, enquanto a corrupção passiva mereceu um total de 291,9 anos. No caso de corrupção ativa, foram 172,3 anos até agora, e organização criminosa, 119,4. O levantamento também mostra que, em média, a corrupção passiva, na caneta de Moro, acarreta penas maiores do que a corrupção ativa, o que sinaliza que, no entender do juiz, agentes públicos merecem sanções mais pesadas que os empresários condenados por corrompê-los. Ainda assim, o destino de Lula poderia ter sido relativamente pior. Em vez de receber a pena de seis anos para o crime de corrupção passiva, poderia ter levado a mesma canetada dada ao doleiro Alberto Youssef, condenado a oito anos e seis meses. No caso de lavagem de dinheiro, Lula foi sentenciado a três anos e meio, menos da metade do período de condenação de seu companheiro de petismo, José Dirceu.

Assim como o ex-presidente, houve outros contemplados com condenações dentro da média, como o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. Sua sentença pelo crime de corrupção passiva foi de seis anos de prisão. O ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto foi condenado à mesma pena. Vaccari ainda teve outras cinco condenações pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa — uma delas revertida em absolvição pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em junho. O ex-presidente Lula também recebeu sentença similar à do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, condenado a três anos e meio por lavagem de dinheiro. Lula pode não gostar do fato de sua sentença nada ter de extraordinário, mas deveria se preocupar mais ainda com outra coisa: o fato de ela o igualar à infame categoria dos criminosos condenados pela Justiça.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2017, edição nº 2539