O novo passo do frevo
O som do Carnaval pernambucano está sendo transformado por uma geração de artistas que não querem repisar o estereótipo turístico da dança com sombrinhas










O Carnaval acompanha Flaira Ferro. A cantora nasceu em fevereiro, e no Recife. Tinha 6 anos quando pediu um presente de aniversário folião à sua mãe: queria assistir ao desfile do Galo da Madrugada, um dos blocos de rua mais tradicionais de Pernambuco. O pedido foi atendido, e Flaira se deixou contagiar. “Fiquei encantada. Eu me lembro ainda das pessoas dançando”, conta. A paixão pelo ritmo básico do Carnaval pernambucano — o frevo — sedimentou-se nas aulas com o lendário dançarino Nascimento do Passo (1936-2009). Na sua carreira, Flaira canta rock e baladas, mas não largou a paixão despertada na infância pelo Galo da Madrugada. Ela integra uma leva variada e criativa de intérpretes, orquestras e passistas empenhados em renovar o gênero que completa 111 anos em 2018. São artistas que cruzam frevo com jazz, que mudam a formação das bandas tradicionais, que tentam aproximar o ritmo do Recife dos gêneros mais populares do Brasil, entre eles o sertanejo universitário e o axé. Há um desejo de sacudir a imagem já demasiado pitoresca e turística dos dançarinos com sombrinha e de renovar o repertório tradicional. “O meu lema é ‘Chega de Vassourinha!’ ”, diz César Michiles, líder de uma orquestra que colocou na linha de frente a flauta, instrumento pouco costumeiro no frevo. Não, ele não odeia a composição clássica de Mathias da Rocha e Joana Batista. Só acha que o frevo pode ir além dela.
O marco de 111 anos é apenas uma convenção. Até onde se sabe, a palavra “frevo” apareceu na imprensa do Recife pela primeira vez no Jornal Pequeno, em 9 de fevereiro de 1907. Mas a música que a palavra designa já era tocada na cidade no fim do século XIX, conhecida então como “marcha pernambucana”. O frevo — corruptela de “fervo”, do verbo “ferver” — nasceu da conjunção do som das bandas marciais com os passos de capoeira. Ritmo regional, conheceu diversas fases de repercussão nacional. Nos anos 30, astros do rádio como Francisco Alves, Aracy de Almeida e Carlos Galhardo debruçaram-se sobre o gênero pernambucano. Fundada em 1953, a gravadora Rozenblit, que registrou as criações de compositores como Capiba e Nelson Ferreira e a voz de intérpretes como Claudionor Germano, levou o frevo a outros estados nordestinos — mas também deu origem a um mercado autossuficiente, que não estimulava os artistas a buscar novas praças. A gravadora fechou as portas nos anos 80, e boa parte de seu precioso acervo foi perdida em enchentes do Rio Capibaribe.
Houve outras iniciativas para levar o frevo além dos limites estaduais, como, nos anos 80, o projeto Asas da América, do compositor pernambucano Carlos Fernando — autor de Banho de Cheiro, sucesso na voz de Elba Ramalho —, que mobilizou compositores da elite da MPB como Chico Buarque e Gilberto Gil. Foi depois de participar do projeto que Alceu Valença mergulhou de vez no frevo — embora ele lembre que já era íntimo do gênero desde os 7 anos, quando ficou conhecido como “doidinho de dona Adelma” (nome de sua mãe) em um programa de calouros. A renovação mais recente do frevo começa sobretudo com o movimento Batidas Urbanas: Projeto Micróbio do Frevo, lançado pelo cantor Silvério Pessoa, em 2005. Ele atualizou os frevos compostos por Jackson do Pandeiro (1919-1982), com a colaboração do maestro Spok — líder de uma das melhores orquestras de frevo em atividade — e da viúva de Jackson, Almira Castilho. “Muitas das ideias disseminadas hoje vieram desse projeto”, diz Pessoa.
A identidade do frevo está muito ligada às orquestras, que tradicionalmente tinham dois tipos de formação: com naipes de sopro, ideais para tocar frevo de rua, e com instrumentos de corda, que executam o chamado frevo de bloco ou marcha de bloco. Os grupos atuais, no entanto, estão subvertendo essa linguagem musical. A SpokFrevo Orquestra angariou fãs célebres como o trompetista americano Wynton Marsalis, que comparou o frevo pernambucano aos primórdios do jazz de Nova Orleans. A Orquestra Popular da Bomba do Hemetério faz uma versão anárquica do frevo. Seu líder, o trompetista Francisco Amâncio da Silva, o Maestro Forró, mostra a verve farrista até no figurino: adora combinar casaca, bermudas e óculos gigantes. Às vezes rege de cabeça para baixo, e há dois anos desceu a um palco de rua de tirolesa, tocando trompete. Sua banda é composta de instrumentistas de alta patente, que alternam o frevo com músicas de artistas contemporâneos como Otto e o grupo de hardcore Devotos do Ódio.
Surgida há doze anos, a Orquestra Contemporânea de Olinda também se dedica a outros ritmos do universo folclórico pernambucano. “O frevo não entra na nossa música de maneira convencional, mas está presente nas letras, nos arranjos, no naipe de percussão”, diz Gilu Amaral, mentor do grupo. O mais recente sopro de inovação é a Transversal Frevo Orquestra, criada em 2017 — deve gravar o primeiro disco neste ano — pelo flautista César Michiles, filho do compositor J. Michiles, autor de sucessos como Diabo Louro, célebre na voz de Alceu Valença. “Meu pai, que sempre foi tradicionalista, dizia para eu colocar um banjo ou violão na formação. Respondi que tinha de ser flauta e pronto”, conta. O primeiro frevo de César foi Pega Ladrão, inspirado em um triste episódio da crônica familiar — um assalto à casa de sua mãe. A composição ganhou, em 2008, um prêmio de 30 000 reais que a prefeitura do Recife instituiu para novos frevos. “Com o dinheiro, repus o que foi roubado”, afirma Michiles, que foi aluno da prestigiada Manhattan School of Music.
O Recife tem clãs do frevo. Claudionor Germano, um dos maiores intérpretes da história do gênero, foi o cantor que mais gravou as criações de Capiba (132 músicas) e que nos anos 80 adaptou Morena Tropicana, de Alceu Valença e Vicente Barreto, para o ritmo do frevo. Nonô Germano, seu filho, concebeu um subgênero chamado “frevo de balada”, que tem como objetivo tornar o estilo palatável para os adeptos do sertanejo universitário e do forró eletrônico. “Eu quero trazer para o frevo a mesma revolução feita na música caipira e no samba”, afirma. Suas letras carregam nos temas próprios de um Wesley Safadão. “Vai ter beijo na boca / Muita azaração / Todo mundo de boa é o que interessa”, diz Vai Dar Amor. Em uma seara mais, digamos, popular-alternativa, a Frevália, movimento do cantor Romero Ferro, quer levar a farra além do Carnaval. “O frevo pode ser tocado o ano inteiro”, diz Romero Ferro. As festas da Frevália são embaladas por frevos de artistas de fora de Pernambuco, como Moreno Veloso e Adriana Calcanhotto, e por músicas tradicionais em versão pop — caso de Banho de Cheiro, que ganhou arranjo inspirado em sonoridades africanas. Uma das participantes do movimento é a cantora Mônica Feijó, que circulou pela cena manguebeat e atualmente está no Frevo para Ouvir Deitado, outro projeto musical do Recife (pelo jeito, os “projetos” são quase tão populares quanto as orquestras). A proposta é recriar composições antigas em roupagem quase camerística. “Capiba dizia que, se o frevo não tivesse metais, ele seria o nosso jazz”, conta Mônica.
O jazz também se faz presente no trabalho do pianista Amaro Freitas, que emprega os conjuntos típicos do gênero americano para tocar frevo — no lugar da tuba das bandas de rua pernambucanas, por exemplo, entra o contrabaixo. “Minha música trabalha com as células do frevo”, explica. Há outros cruzamentos inusitados no frevo atual: em 2017, Laís de Assis cruzou o ritmo carnavalesco com a viola nordestina, nos passos do bandolinista Rossini Ferreira e do violeiro Adelmo Arcoverde — que ela inclui em seu repertório, junto com composições próprias. Toda essa explosão criativa ainda busca seu público. “Há bons frevos novos que não são executados nas rádios. Então, não são conhecidos nem em Pernambuco”, lamenta o jornalista José Teles, autor de quatro livros sobre o gênero.
A novidade não se limita ao som: a dança tenta novos passos. O bailarino Otávio Bastos ensina os passistas amadores a desenvolver seu estilo, com um pé firme na modernidade. “Eu queria mostrar algo além do frevista ginasta, que dá aqueles passos acrobáticos”, diz Bastos, que mantém um canal no YouTube no qual conta um pouco da história do gênero. A cantora Flaira Ferro também busca inovações nos passos do frevo em seus espetáculos. Bailarina de dotes atléticos, ela impressiona com os saltos associados ao gênero, mas também faz improvisações contemporâneas combinadas com solos jazzísticos de Spok. Seu disco de estreia, Cordões Umbilicais, de 2015, evocava ritmos folclóricos pernambucanos, mas ficou mais conhecido por uma balada pop, Me Curar de Mim. Para o próximo disco, cujas gravações ainda estão para começar, ela compôs mais frevos. Flaira quer que o ritmo fundamental de seu estado converse melhor com os tempos atuais. “O frevo tem de representar a nossa época. As canções estão muito ligadas à temática do Carnaval, à nostalgia”, diz. Chega de saudade — e de sombrinhas e de vassourinhas.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2018, edição nº 2568