Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

O novo ativismo pop

Sucesso de 'This Is America', clipe-manifesto do rapper Childish Gambino, coroa o momento de furor politizado das estrelas da música negra na era Trump

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h10 - Publicado em 25 Maio 2018, 06h00

Diante das dificuldades de distribuição da revista decorrentes da greve dos caminhoneiros, VEJA, em respeito aos seus assinantes, está abrindo seu conteúdo integral on-line.
No recém-lançado clipe de This Is America, o rapper Childish Gambino — persona musical do ator e escritor Donald Glover — perpetra um audacioso libelo político. Em seus quatro minutos, o vídeo resume as agruras sofridas pelos negros americanos nos últimos quatro séculos, da escravidão nas lavouras do sul do país à era Trump. Caminhando fácil para os 200 milhões de acessos, This Is America usa a violência visual para denunciar o racismo e a opressão. São tantas as referências disparadas com a velocidade de uma metralhadora Uzi por Gambino e pelo diretor Hiro Murai — colaborador do rapper no seriado Atlanta, exibido pela Netflix — que é necessário vê-lo várias vezes para digerir seu painel impactante. Um cantor de blues e os integrantes de um coral gospel são assassinados a tiros por Gambino, ilustrando como essas manifestações culturais seriam sufocadas pela “América branca”. A calça que o rapper veste em cena emula o uniforme do Exército Confederado, envergado na Guerra Civil americana (1861-1865) pelos sulistas em luta contra o fim da escravidão. Nos minutos finais, Gambino surge fugindo da polícia, em óbvia denúncia da truculência contra os jovens negros americanos.

O clipe causou o barulho esperado: enquanto uns saudaram a coragem de Gambino, outros acusaram-no de só semear mais ódio. Do que ninguém discorda: This Is America se harmoniza perfeitamente com o estado de espírito do pop americano atual. Se o engajamento andou adormecido nos anos da gestão do afrodescendente Barack Obama, as sensibilidades políticas despertaram com fúria no governo do republicano Donald Trump. Gênero preferido por 25,1% dos jovens americanos, segundo uma pesquisa divulgada no ano passado pela revista Forbes, o rap acaba sendo o principal desaguadouro da insatisfação e dos ataques ao “sistema”, ocupando um espaço que já foi do rock (hoje apreciado por um contingente pouco menor: 23% dos americanos).

O novo ativismo pop
Dedo na ferida - Janelle Monáe (no alto, à esq.), o rapper Kendrick Lamar (no alto, à dir.) e Beyoncé: contra o racismo, a favor da sexualidade soltinha (Gary Gershoff/Getty Images/Samir Hussein/WireImage/Getty Images/Kevin Mazur/Coachella/Getty Images)

Nas trincheiras do novo pop politizado há dois figurões influentes: Jay-Z e sua mulher, Beyoncé. Na música The Story of O.J., o cantor e produtor mais poderoso do rap parte da comoção com o julgamento do astro do esporte para denunciar o preconceito e falar da “condição negra”. “É uma canção sobre nós como uma cultura, sobre ter um plano, sobre como levar as coisas adiante”, declarou. Sua mulher, a maior estrela feminina do R&B, não deixa por menos: na turnê Formation (2016) e em sua recente apresentação no festival Coachella, Beyoncé assume o papel de sacerdotisa da causa racial e do dito “empoderamento” da mulher. O front é reforçado com astros como Kendrick Lamar, que ganhou o Prêmio Pulitzer por DAMN, seu mais recente (e engajadíssimo) disco. Na canção FEAR, ele faz um autorretrato aos 7, 17 e 27 anos, enumerando preocupações como o medo de ser assassinado pela polícia. As cantoras Erikah Badu e Janelle Monáe também gostam de um papo politizado. No caso de Janelle, é protesto sem perder a ternura: ela combina a doçura musical de um Stevie Wonder com a postura radical de um Public Enemy. Hell You Talmbout, de 2015, listava o nome de negros mortos nas mãos da polícia ou em ataques racistas. Dirty Computer, seu novo disco, traz canções-manifesto: Django Jane fala de negros americanos que fugiram do país e Americans protesta contra as leis anti-imigração do governo Trump.

Continua após a publicidade

Não foram só os discos que se tornaram verdadeiros manifestos políticos: há movimentos semelhantes em áreas como o cinema e a televisão. O próprio Kendrick Lamar é um exemplo da natureza coordenada do bombardeio. É dele a trilha sonora de Pantera Negra, filme da Marvel que se vale de um super-herói africano para celebrar a força negra. É irônico o contraste entre seu sucesso nas bilheterias e a gritaria promovida em 2016 nas redes sociais pelo movimento #Oscarsowhite (“Oscar branco demais”), que denunciava a falta de negros entre os indicados à grande premiação de Hollywood. A pressão deu certo: no ano seguinte, a academia concedeu o Oscar a Moonlight: sob a Luz do Luar, filme cujo protagonista carrega o triplo fardo de ser negro, gay e pobre. O excelente suspense Corra!, indicado ao Oscar deste ano, toca no horror do racismo de forma mais sutil. Na TV, uma sitcom como Black-ish mostra o dia a dia de uma família negra de classe média. Recentemente, a rede ABC se negou a exibir um episódio que falava sobre um imbróglio real: a recusa do jogador de futebol americano Colin Kaepernick em ficar de pé durante a execução do hino do país, em 2016, atitude criticada por Donald Trump — em represália ao destempero presidencial, outros jogadores repetiram, solidários, o gesto rebelde do colega.

O novo ativismo pop
Na contramão - Kanye West: a escravidão foi “uma escolha dos negros” (Taylor Hill/Getty Images)

Em seu DNA, a nova música negra engajada descende da vertente mais insolente do funk. Vem de Sly Stone e seu provocativo hit Don’t Call Me Nigger, Whitey (“Não me chame de crioulo, branquelo”), e de James Brown, com sua Say It Loud, I’m Black and I’m Proud (“Diga bem alto, sou negro e me orgulho disso”). Mas há outros antecedentes. A música negra americana sempre refletiu com agudeza as questões sociais do país. O jazz pôs em voga manifestos como Strange Fruit, gravada por Billie Holiday em 1939 (e composta por um judeu, Abel Meeropol), e Mississippi Goddam, que Nina Simone registrou em 1964. São protestos vigorosos contra o assassinato de jovens negros no sul dos Estados Unidos. A luta pelos direitos civis, nos anos 60, serviu de inspiração para muitos compositores negros, de Sam Cooke a Curtis Mayfield. Até a Motown, gravadora notabilizada por seguir uma linha apolítica (e, portanto, mais palatável à classe média branca), teve seu quinhão de protesto. Lançou um discurso do pastor e líder negro Martin Luther King Jr. em disco. E artistas de seu cast, como Marvin Gaye e Stevie Wonder, fizeram canções sobre racismo e libelos contra a Guerra do Vietnã.

Continua após a publicidade

A nova música de protesto exibe a forma vertiginosa dos videoclipes de rap e R&B, mas sua pauta continua notavelmente semelhante, em essência, àquelas abraçadas por astros negros de outros tempos: os principais alvos continuam a ser a discriminação racial, a perseguição judicial e a truculência da polícia. A nuance contemporânea é que os artistas não disfarçam uma ponta de decepção: depois de embarcarem no sonho de ver um presidente negro e liberal como Obama ser eleito, é como se vivessem a ressaca. Que começou durante o governo do democrata, com a morte de jovens negros pela polícia nas cidades de Ferguson e Baltimore, entre 2014 e 2015. Aí vem o fator que dá a cara atual do fenômeno: por meio das redes sociais, a campanha #BlackLivesMatter (“Vidas negras importam”) ganhou corpo e naturalmente foi encampada pelo pop. O álbum Black Messiah, do cantor D’Angelo, foi um dos catalisadores dessa nova onda de protesto musical. Lançado no fim de 2014, foi inspirado pelas manifestações em Ferguson. A revolta motivou o soulman a criar um apanhado de músicas cheias de provocação política.

A causa dos novos politizados é legítima, mas irrita seus opositores, que não se cansam de denunciar o que chamam de “mi-mi-mi identitário”, sobretudo quando acumula a defesa de uma minoria dentro de outra minoria. Recentemente, Janelle Monáe revelou sua bissexualidade à revista Rolling Stone. Como disse que, para ela, ser negra e ter relações com homens e mulheres equivale a ser uma alma livre, os conservadores do pedaço já se arrepiaram. Como é comum em momentos de ânimos acirrados, quem sai do quadrado entra na linha de tiro (figurativa, é claro). O rapper Kanye West, ao abraçar o reacionarismo, tornou-se a versão americana de Lobão. Causou mal-estar ao propagar no Twitter mensagens em defesa da besta-fera dos rappers liberais: Trump. Foi chamado de doente mental e acabou dando razão aos seus críticos ao afirmar numa entrevista que a escravidão teria sido “uma escolha dos negros” americanos. Meter-se em política é uma boa política, mas, hoje em dia, é preciso saber encarar a pancadaria.

Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.