O mundo é uma ilha
Com pouco mais de 330 000 habitantes, a Islândia tem seus segredos para o sucesso no futebol, mas sobretudo fora dos gramados
Sabe da última que andam contando por aí? Um em cada 337 686 cidadãos da Islândia já defendeu um pênalti de Messi. A piada singrou as redes sociais desde que Hannes Halldórsson, o diretor de cinema e de comerciais que joga futebol nas horas vagas, voou para a direita e impediu que a Argentina fizesse o segundo gol, no Estádio Spartak, em Moscou. O empate por 1 a 1 foi celebrado como um feito mítico, heroico, digno de Espártaco, de um minúsculo país insular do Atlântico Norte afeito a sagas milenares — só não foi mais comemorado que a façanha de ter alcançado as quartas de final da Eurocopa de 2016, quando o mundo descobriu o “hu”, o divertido e imponente canto dos torcedores que, pontuado por palmas, vai se acelerando animadamente até chegar ao ápice.
Até 2016, a Islândia era conhecida, para além de sua geografia vulcânica, pela cantora Björk e por ter sediado, em Reikjavik, a capital, dois encontros históricos: em 1972, quando houve a disputa do campeonato mundial de xadrez entre o americano Bobby Fischer e o soviético Boris Spassky; e em 1986, quando Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev se reuniram para começar a sepultar a Guerra Fria. Também houve a quebradeira econômica de 2008 e, mais recentemente, o anúncio de que todos os habitantes foram submetidos a um projeto de compilação do genoma, um feito extraordinário — e de promessas para a medicina, atalho para a descoberta de propensões a determinadas doenças —, mas razoavelmente simples, dada a homogeneidade genética de uma população que pouco saiu de onde sempre esteve.
E então, hu, veio o futebol. E uma vez mais a Islândia celebrou o que mais gosta de fazer, quando é para se mostrar ao mundo: enaltecer sua reduzida dimensão. “Os islandeses sofrem de uma afasia numérica”, diz a especialista em inteligência artificial e militante política Heida Helgadóttir, ou simplesmente Heida, porque todos são conhecidos pelo primeiro nome (Helgadóttir é o patronímico). “Temos a certeza de vir de um país com 3 milhões de pessoas, e ninguém nos dissuade disso.” Para o presidente Gudni Thorlacius Jóhannesson, “o que nos faz fortes é nossa pequenez” (veja a entrevista na pág. seguinte).
Mas, afinal de contas, como foi possível montar uma boa seleção de futebol, com tão pouca gente, em um lugar inóspito, com frio, neve e ventos gelados de setembro a maio, embora de imenso calor humano, alimentado pelo vício de tomar café o dia inteiro? Montou-se um projeto, começando pela construção de centros de treinamento cobertos para atrair crianças — há onze deles em pleno funcionamento. Os treinadores — inclusive o do time desta Copa, Heimir Hallgrímsson, que divide seu tempo com um consultório odontológico — são frequentemente enviados para aperfeiçoamento na Inglaterra.
Na primavera, no outono e no inverno, o futebol é sempre praticado nos ginásios aquecidos — no verão, quase uma vingança contra a natureza dura das outras três estações, não é raro que as partidas sejam disputadas em lugares de tirar o fôlego, em gramados emoldurados por vulcões e falésias. Há organização, sem dúvida, mas, para os islandeses, tudo é questão de força de vontade, contada em verso e prosa nas lendas. “Sempre tivemos de lutar para sobreviver”, diz Arnar Bill Gunnarsson, diretor de educação da federação islandesa de futebol.
E se, depois do épico empate com a Argentina, tudo começar a dar errado, diante da Nigéria e da Croácia? Pouco importa. Para os islandeses, incluindo os mais de 15 000 que desembarcaram na Rússia, o equivalente a 5% da população, a vida seguirá com coisas mais relevantes que algumas partidas de futebol. Virá o Natal, e as crianças vão se divertir com os treze Papais Noéis da tradição local, cada qual com sua característica. Elas vão rir e tomar sustos com o “batedor de portas”, o “lambedor de colheres”, o “ladrão de salsichas”. E depois do Natal a Islândia se manterá firme como bom exemplo de um cotidiano democrático, apesar dos desafios, como ocorre em qualquer lugar do mundo.
Em janeiro, o Parlamento islandês aprovou uma lei que obriga as empresas a pagar salários iguais para homens e mulheres. Os homens — inclusive os 23 da seleção — têm direito a três meses de licença-paternidade. Desde 2009, a Islândia lidera o ranking elaborado pelo Fórum Econômico Mundial dos países com maior igualdade entre os gêneros. O Brasil aparece na posição 90, entre Cabo Verde e o Senegal — e talvez aí esteja a explicação do vexame mundial protagonizado por brasileiros. (Rememorando: num vídeo que viralizou, um grupo de cinco marmanjos brasileiros, alguns vestidos com a camisa amarela da seleção, assediam uma jovem e tentam fazê-la gritar uma frase impublicável, recorrendo à velha chacota de mau gosto de fazer estrangeiros repetir termos chulos em português. Sem entender o que estava sendo dito nem perceber que era alvo de uma agressão machista, a moça tentou acompanhar o bando. Dois já foram identificados. Um é Diego Valença Jatobá, ex-secretário de Turismo de Ipojuca, em Pernambuco. O outro é Eduardo Nunes, tenente da Polícia Militar de Santa Catarina.)
A Islândia do goleiro-cineasta Hannes é a melhor coisa da Rússia em 2018, independentemente do lugar a que sua seleção chegará. Eis aí a graça de uma Copa, a comprovação de não se tratar só de gols e de pênaltis: a capacidade de iluminar uma história pouco conhecida no palco mundial e mostrar que há múltiplos modos de viver. Hu!
“O que nos faz grandes é sermos pequenos”
Gudni Thorlacius Jóhannesson, 50 anos em 26 de junho, é presidente da Islândia desde 2016. Formado em história, filho de uma jornalista e de um professor de educação física, começou a vida profissional traduzindo livros de Stephen King. Ele se define como um homem de centro, independente. A Islândia tem um presidencialismo como o da França — a chefe do governo é a primeira-ministra Katrín Jakobsdóttir, do partido Esquerda Verde. Jóhannesson falou a VEJA por e-mail.
Uma piada na internet fez troça com a pequena população da Islândia — tirando as mulheres, os idosos, os obesos, os vigilantes das áreas de vulcão, os caçadores de baleia, os banqueiros presos, os deficientes visuais, restariam apenas 23 pessoas, justamente os convocados para a Copa. O senhor achou graça? Gostamos de piadas boas como essa. Somos bem-humorados. O que nos faz fortes é nossa pequenez. Para uma criança na Islândia, um menino ou uma menina, o sonho de jogar na seleção é real porque frequentamos as mesmas escolas, uns conhecem os outros, há proximidade real. Somos como uma só família na Islândia.
A classificação para a Copa e o bom resultado contra a Argentina são acidentes ou fruto de trabalho? Trabalho. Desde a infância, na Islândia, há preocupação com os treinamentos. Damos muita ênfase aos primeiros passos das crianças no futebol, mesmo nos meses de inverno. É parte do nosso sucesso, é o caminho para a vitória na idade adulta. Na atual seleção, temos um treinador excelente e jogadores muito bons — e, como não há nenhum megastar, todos parecem determinados a, juntos, fazer tudo o que podem pelo time e pelo país, coletivamente, sem estrelismo.
O senhor gosta de futebol? Adoro ver, e uma vez por semana jogo com os amigos. Não tenha dúvida: na Islândia, hoje, toda a população ama futebol.
A celebração da torcida — o já famoso “hu, hu”, com palmas que vão se acelerando, braços erguidos — virou marca querida da Islândia. O senhor também faz o “hu”? É claro que sim. Outro dia mesmo, com um grupo de convidados de fora que estava no palácio presidencial em Reikjavik, o Bessastaoir, sugeri que fizéssemos o “hu”. Foi bem divertido.
O que significa, para o turismo e os negócios, a Islândia ter ido à Copa e ter feito uma estreia tão empolgante? Como eu disse, o que nos faz grandes é sermos pequenos. É claro que no cotidiano da população há muita discordância, há embate político, há diferenças. Mas somos uma sociedade democrática, e o que nos une hoje é a seleção de futebol. É gratificante saber que conquistamos admiradores e apoiadores globalmente, inclusive no Brasil. Todo mundo ama o azarão, e isso nos dá mais pujança. No gramado, respeitamos quem quer que seja, mas não tememos ninguém.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2018, edição nº 2588