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O mundo assiste à Lava-Jato

Com 'O Mecanismo', que será visto em 190 países, José Padilha transforma o escândalo brasileiro em entretenimento global — sem corromper sua essência

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h37 - Publicado em 16 mar 2018, 06h00

Noite após noite, o delegado Marco Ruffo (Selton Mello) vasculha latas de lixo como um cão farejador obsessivo: ele sabe que ali tem osso de bicho grande. O agente da PF que protagoniza O Mecanismo, série do brasileiro José Padilha que chegará à Netflix na sexta-feira 23, gasta seus dias num escritório em Curitiba deglutindo centenas de milhares de aparas de extratos bancários jogadas no lixo pelo doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz). Ex-colega de escola de Ruffo, Ibrahim passou de pobretão vendedor de pastéis a muambeiro, e daí a milionário. “Vinte anos de Polícia Federal, e tudo o que consegui foi comprar um carro usado para minha esposa e um sítio no interior do Paraná”, repete Ruffo. A vida de Ibrahim oferece um contraste chocante: sem ter completado os estudos e nem ao menos exercer uma profissão, ele circula nas altas-rodas políticas e empresariais. O delegado da série é fictício, mas seu alvo se inspira num personagem real e familiar: o doleiro Alberto Youssef, cuja prisão faria deslanchar a maior operação contra a corrupção vista até hoje no Brasil. A Lava-Jato já foi tema de um longa-metragem, o constrangedor Polícia Federal — A Lei É para Todos. Mas agora torna-se um escândalo tipo exportação: com ritmo de thriller investigativo, O Mecanismo vai ser lançado ao mesmo tempo em 190 países. Será pelo prisma de Padilha, enfim, que o mundo vai conhecer os meandros da operação. E ninguém exibe tantas credenciais para cumprir a tarefa quanto o diretor dos dois Tropa de Elite.

A Lava-Jato revista por Padilha é um ser híbrido: baseia-se em episódios verídicos, mas abraça sem pudor a reinvenção dramatúrgica. Apesar das licenças, não trai a essência do esquema desnudado pela operação que mudou a história do país. Ruffo resume a dimensão insidiosa do inimigo: “É um câncer”. Em O Mecanismo, a luta contra essa chaga se inicia dez anos antes da eclosão da Lava-Jato. Ao remontar e cruzar milhares de extratos bancários, Ruffo descobre o bilionário esquema de lavagem de dinheiro do Caso Banestado. A investigação funcionou como ensaio para a futura operação, mas não teve final feliz para quem ansiava ver os corruptos na cadeia. O doleiro Ibrahim é preso, mas logo seus advogados manobram para tirá-lo do xadrez em troca de uma delação premiada meia-sola, que fez tudo terminar em pizza — como ocorreu com seu similar real Youssef em 2003.

O inconformista Ruffo não só vê seu trabalho perdido como amarga o desterro pela audácia de mexer com corruptos de largo costado: é expulso da PF e obrigado a manter a família com uma pensão de fome. Já Ibrahim continua a operar livre, leve e solto. Sua quadrilha, que faz lavagem de dinheiro para as maiores empreiteiras e políticos do país, age sob a fachada de uma casa de câmbio chinfrim instalada num posto de gasolina em Brasília. Mas, graças a milimétricos deslizes dos criminosos, a equipe da PF em Curitiba — agora liderada pela antiga escudeira de Ruffo, a delegada Verena (Caroline Abras) — vislumbra a chance de pegar não apenas o doleiro, como outros peixes maiores. Superestimando sua sorte, Ibrahim — de novo, igualzinho ao que Youssef fez na vida real — dá de presente, por impulso, um carrão para João Pedro Rangel (Leonardo Medeiros), executivo da gigantesca companhia petrolífera estatal Petrobrasil. Sim, claro: Rangel é o equivalente de Paulo Roberto Costa, primeiro delator da Lava-Jato — e a empresa em questão é aquela da qual ele foi diretor de verdade, a Petrobras. A série recria a tensão e os lances inacreditáveis da operação com múltiplos alvos em diferentes cidades que detonou a Lava-Jato — cujo quarto aniversário se completa neste sábado 17.

O Mecanismo exibe certo ponto fraco. No caso dos partidos, a série dá nome aos bois — PT, MDB e PSDB são citados. Mas troca-se o nome de personagens, mesmo aqueles amplamente conhecidos, o que às vezes lança a série no campo da caricatura pueril. Quando são recriadas histórias verídicas, é compreensível condensar personagens e mudar acontecimentos de lugar em nome da fluência narrativa. Enquanto as trocas de nome ficam num Youssef ou num Paulo Roberto Costa, sem problemas. Mas já é demais quando se estendem a um Marcelo Odebrecht ou, pior, a ex-presidentes como os petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff — na série, eles são, pela ordem, Ricardo Bretch, João Higino e Janete Ruscov. O expediente covarde foi exigência da Netflix, pelo temor de problemas jurídicos.

Isso causa estranheza, mas não chega a tirar a força de O Mecanismo. Se o longa Polícia Federal — A Lei É para Todos abraça o ridículo na ânsia de transformar a Lava-Jato em filme de ação, a série de Padilha extrai entretenimento de alta octanagem das sutilezas investigativas e, sobretudo, da densidade psicológica dos personagens. Selton Mello, como de praxe, não decepciona: seu Ruffo transborda indignação autodestrutiva, o que confere dimensão trágica a um homem que faz as vezes de pequena peça capaz de mover a engrenagem da história. Curiosamente, política não é coisa que atraia o ator. “Nunca me interessei, na verdade. Mas o Ruffo é fabuloso: um touro indomável que todos acham louco, mas enxerga as coisas antes dos outros”, diz. A grande presença na primeira fase da série, contudo, é Enrique Diaz: o ator imprime à versão televisiva de Youssef a frieza soturna e cínica de um grande vilão.

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Padilha faz de O Mecanismo uma extensão natural das discussões sobre o Brasil que empreendeu ao longo de toda a carreira. “Terminei o segundo Tropa de Elite em Brasília, insinuando que havia uma conexão entre a violência nas ruas e a corrupção na política. A Lava-Jato confirmou isso”, diz o diretor . Violência e injustiça social, em suma, não são tão distantes dos crimes de colarinho-branco: ao contrário, essas mazelas derivariam do mal sistêmico maior.

Outra tese cara ao diretor: as vaidades pessoais e as tentativas simplificadoras de personificar heróis e vilões são combustíveis que permitem ao esquema resistir despercebido e se revigorar. A série sugere que a investigação do Banestado se perdeu com a “mania de grandeza” do pessoal do Ministério Público e do juiz Paulo Rigo (Otto Jr.), que se apressaram a fechar acordo com o doleiro — no caso real, quem aprovou a mesma delação foi um então jovem Sergio Moro. Se no livro de que bebe a série o jornalista Vladimir Netto elege Moro como herói (até na capa), aqui ele é figura secundária. “Se você fizer uma série que tem como herói um cara sentado na mesa lendo processos, vira um tédio”, diz a roteirista Elena Soarez, que visitou Moro na 13ª Vara Federal, em Curitiba. “Ele é mesmo de pouquíssimas palavras.”

Na verdade, mais que atender a uma imposição da dramaturgia, o fato é que Padilha prefere enfatizar o esforço idealista de formiguinhas como Ruffo. Por reflexo inverso, ele dá outro recado contundente: os poderosos e seus operadores passam, mas o mecanismo da corrupção continua intacto. Mesmo o expediente boboca da troca do nome de Lula e Dilma tem algo a ensinar: na lógica do mecanismo, os políticos são só fantoches para se usar e descartar.

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(./VEJA)

Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574

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