O lastro da palavra
Em sua história das negociações internacionais, Rubens Ricupero defende a ideia de que a glória do passado nacional se deve mais à diplomacia que às guerras
Resignados a uma rotina burocrática restrita a gabinetes, diplomatas costumam produzir memórias enfadonhas, em que recompensam o próprio ego narrando apertos de mãos com celebridades, jantares exóticos e traslados para aeroportos nos diversos países em que foram lotados. Nas páginas de A Diplomacia na Construção do Brasil: 1750-2016, contudo, Rubens Ricupero conjuga o verbo em primeira pessoa somente quando é indispensável. Embaixador do Brasil na ONU, em Roma e em Washington e ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, ele esteve várias vezes no olho do furacão. Ainda assim, quando se coloca no próprio texto parece pedir licença para falar. Não é o livro de um memorialista que se pavoneia, mas sim uma investigação histórica sobre os esforços diplomáticos do Brasil. Ganha o leitor, e não a vaidade do autor.
“No Brasil, a glória do passado é mais frequentemente associada à diplomacia que aos feitos militares ou realizações em outros setores”, escreve Ricupero. Segundo ele, foi graças a negociações bem conduzidas que o país, mesmo sem ter grande poder militar ou econômico, alcançou a dimensão que desfruta hoje. Um dos fatores que contribuíram para que essa habilidade se desenvolvesse é o elevado número de vizinhos, dez, muito mais do que têm os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália. Nas suas contas, a maior parte das guerras aconteceu ainda no período colonial. “Do total de 190 anos de lutas, tensões e rivalidade, correspondem ao período colonial 142 anos, perto de três quartos”, diz. O embaixador não esquece que existem exceções à regra e narra as intervenções brasileiras no Uruguai e na Argentina de Juan Manuel Rosas, em 1851 e 1852. Apesar disso, acusar o país de expansionista por causa dessas poucas ações seria um exagero.
Ao recontar a história nacional sob o prisma do Itamaraty, o autor transmite a sensação de que muito do que ocorreu por aqui foi produto de eventos internacionais e da forma escolhida para lidar com eles. A conquista de Portugal e da Espanha por Napoleão Bonaparte, no início do século XIX, transformou o Brasil na única monarquia na América do Sul e atrasou em pelo menos uma década e meia revoltas populares (como a Cabanagem e a Revolução Farroupilha), que em outros países da América Latina aconteceram antes. Essas brigas regionais ainda teriam incutido um horror à anarquia e ao caos em figuras que mais tarde ganhariam destaque na diplomacia, como o barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco. Depois da independência, em 1822, o desejo de dom Pedro I de obter reconhecimento de Portugal e da Inglaterra precipitou sua queda.
Na II Guerra, ainda que tenha participado de modo quase simbólico, no final do conflito, com a Força Expedicionária Brasileira, o país conseguiu vários dividendos graças a essa posição. Três anos depois da declaração de guerra aos países do Eixo, a economia crescera, a dívida externa fora controlada, a indústria ganhara dinamismo e o Brasil emergira como a principal força armada da América Latina. “Seria necessário recuar no tempo, até a época de Rio Branco, para encontrar outro período no qual a diplomacia foi capaz de produzir resultados tão brilhantes e tangíveis”, diz o autor. Vez por outra, decisões no palco internacional reverberaram negativamente. O presidente Jânio Quadros provocou indignação na opinião pública ao condecorar Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, em plena Guerra Fria. Foi em 19 de agosto de 1961 — seis dias antes da intempestiva renúncia de Jânio.
À vontade na cadeira de professor de relações internacionais (aos 80 anos, ele dá aulas esporádicas), Ricupero faz analogias que só alguém com muita experiência e boa memória pode fazer. Ele relaciona o isolamento do Paraguai de Francisco Solano López, que invadiu o Brasil e a Argentina, dando início à Guerra do Paraguai (1864-1870), com o despotismo da família Kim na Coreia do Norte. O presidente Itamar Franco é comparado com o americano Ronald Reagan: o maior mérito de ambos foi ter poucas ideias, duas ou três, não mais, e levá-las adiante com inabalável convicção. No caso de Itamar, a ideia-mestra foi o Plano Real, que Ricupero ajudou a implementar. Lula teria similaridades com Juscelino Kubitschek, que governou entre 1956 e 1961. “Lula lembra Juscelino não apenas no enorme sucesso e na constante popularidade ao longo e no final do mandato; eles também se parecem no aumento e desequilíbrio dos gastos públicos, semeando as crises que desestabilizaram seus sucessores”, diz o embaixador. Sem inclinações partidárias e com conhecimento de sobra, Ricupero produziu um livro que merece atrair muita gente além dos arquivistas do Instituto Rio Branco.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2017, edição nº 2550