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O início do fim da esperteza

O VAR é, até agora, a grande marca na Copa 2018. Tem provocado confusão, mas são as dores do parto de uma ótima ideia da tecnologia a serviço da honestidade

Por Alexandre Salvador e Luiz Felipe Castro, de Sochi
Atualizado em 4 jun 2024, 16h47 - Publicado em 22 jun 2018, 06h00

Numa Copa do Mundo em condições normais, nada superaria o espanto com a artilharia de Cristiano Ronaldo, que marcou três vezes logo na estreia, no empate por 3 a 3 de Portugal e Espanha, e também na vitória mínima contra o Marrocos. Houve a alegre estreia da Islândia — 1 a 1 contra a Argentina —, o país de menor população a disputar a maior de todas as competições. Os russos fizeram a festa com a chuva de gols, ao vencer a Arábia Saudita por 5 a 0 e o Egito por 3 a 1, acendendo um pavio de euforia que se espalhou pelas ruas, em diálogos com os forasteiros feitos de gestos e poucas palavras, vertidos animadamente por programas eletrônicos de tradução baixados nos smartphones. Mas o torneio da Rússia nada tem de normal e certamente fará história por uma tecnologia que chega aos gramados a serviço da honestidade e da correção — o árbitro de vídeo, ou VAR, na sigla em inglês.

O início do fim da esperteza
JUSTIÇA –  Neymar e Miranda reclamam do juiz mexicano, em vão: a estreia do árbitro de vídeo ainda renderá muita confusão, mas já não há retorno (Buda Mendes/Getty Images)

Os brasileiros, aparentemente incapazes de aceitar um empate desolador, foram os primeiros a queixar-se de que o VAR não cumpriu sua função no lance do gol de empate da Suíça. Acusaram um suposto empurrão ilegal do meia Steven Zuber contra o zagueiro Miranda antes de cabecear a bola a caminho da rede. Para os cartolas da CBF — e também para Galvão Bueno, o ego e o superego do país diante da televisão —, o juiz mexicano César Ramos errou, e não só errou como deveria ter pedido ajuda ao VAR. Mesmo Tite, sempre muito comedido e cauteloso, ao ser indagado sobre a confusão, perdeu a fleuma. “Eu aceito falar de todos os outros gols, mas o de hoje não. Se o cara empurra o meu jogador, não é falha de posicionamento, é falta”, disse.

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(Arte/VEJA)

A CBF chiou oficialmente por meio de uma carta. A Fifa desdenhou, em resposta encabeçada por Pierluigi Collina, o famoso careca da final de 2002, chefe da Comissão de Arbitragem. Ele informou que a pergunta que os quatro juízes de vídeo aboletados numa sala em Moscou diante de 33 câmeras devem fazer a si mesmos quando o homem do apito toma uma decisão não é se “a decisão do árbitro foi correta”. Eles devem se perguntar se “a decisão do árbitro foi clara e obviamente errada, pois a interpretação do árbitro em todas as demais situações é e permanece sendo a única relevante quando uma decisão é tomada”. Resumo da ópera: o juiz no gramado tem a palavra final, ainda que a turma do VAR lhe recomende que reconsidere uma decisão. No caso do lance da Suíça, todos os cinco mandachuvas, o do campo e os da cabine com monitores, não viram falta.

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Eis aí um evidente benefício da introdução do VAR: ainda que o juiz no gramado tenha a voz final, ele deixa de ser o único par de olhos a acompanhar os momentos cruciais de uma partida. Nada impede que ele erre e que os outros quatro também errem — como acreditam os cartolas da CBF —, mas a probabilidade é obviamente menor. É natural que um gol marcado e depois anulado gere toneladas de muxoxos, mas é um tanto descabida a postura contra a tecnologia a serviço da honestidade. O VAR ainda precisa ser aperfeiçoado, é informação novíssima num esporte que sempre foi arredio a controles eletrônicos, mas agora não tem mais volta. Com o tempo, pode representar o fim da esperteza.

Não há unanimidade; ao contrário, todas as seleções que se sentiram prejudicadas esbravejaram, embora nenhuma tenha feito como a brasileira, com carimbo e protocolo. O suíço Gianni Infantino, presidente da Fifa, tem carradas de razão. “O VAR só traz benefícios”, disse. “Não haverá uma única decisão certa feita no gramado que será revertida pelo vídeo, apenas o contrário.” Até que todos se acostumem — jogadores, treinadores, a torcida, mesmo os juízes e bandeirinhas —, haverá muito quiproquó. VEJA ouviu especialistas, conversou com autoridades da Fifa, e responde às questões cruciais, para apartar qualquer argumento torto de mesa de bar.

Se o árbitro não vai ao monitor à beira do gramado, isso significa que o VAR não atuou no lance? Não. Apesar de o gesto com as mãos (imitando uma tela de televisão) e a conferência dos replays no monitor serem os símbolos mais marcantes do VAR, eles não são as únicas evidências de que o árbitro de vídeo foi usado. O VAR é, sim, acionado em todos os lances de gol da partida, além de faltas violentas passíveis de cartão vermelho ou de cartão dado a atleta errado. Em resumo, se a equipe do VAR entende que a marcação do gramado foi a correta, ela tem duas opções. A primeira é manter-se em silêncio, sem nem se comunicar com o juiz pelo fone de ouvido. A outra saída é fazer um comentário positivo sobre a chamada: algo como “segue o jogo”. Foi o que aconteceu no lance do gol suíço.

O juiz em campo pode acionar o VAR? Em tese, sim. Mas até agora foi o árbitro de vídeo quem abordou o juiz do campo, não o contrário. Não é uma abordagem acintosa, com uma bronca. O tom é de sugestão. Em caso de suspeita de irregularidade, o árbitro de vídeo recomenda ao juiz que retarde o reinício da partida e, ainda com a bola parada, pergunta ao dono do apito se ele não gostaria de rever o lance. A decisão definitiva é sempre do juiz no gramado.

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O árbitro em campo pode ignorar uma chamada do VAR? Sim. Mas é improvável que isso ocorra. A comunicação entre o árbitro de vídeo e o juiz da partida é gravada pela Fifa. Uma negativa do árbitro principal geraria descontentamento e crise.

O VAR já deixou rastros, como confirmação de sua relevância. Nas primeiras dezesseis partidas houve, por exemplo, queda no número de impedimentos marcados. “Os juízes estão preferindo deixar a jogada seguir, pondo a responsabilidade de correção sobre o árbitro de vídeo”, diz Sálvio Spínola, ex-juiz da Fifa e comentarista do canal ESPN. Dos nove pênaltis apontados na primeira rodada, três foram ancorados nos vídeos. Tudo mostra que o VAR veio para o bem, ainda que seja incapaz de enterrar todas as polêmicas e dúvidas. Mas, certamente, reduz o grau de incerteza em lances decisivos. Vida longa ao VAR.

Publicado em VEJA de 27 de junho de 2018, edição nº 2588

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