O desafio das duas horas
Os 42 quilômetros da Maratona de Berlim são o palco ideal para os atletas baixarem uma das marcas míticas do atletismo
O Everest urbano, eis um epíteto adequado para o atual desafio da maratona: completá-la em menos de duas horas. A analogia com a montanha mais alta da Terra, cuja conquista em 1953 pelo neozelandês Edmund Hillary e pelo guia xerpa Tenzing Norgay inspirou filmes e documentários, não é descabida: mais do que uma marca, chegar ao cume do Everest simboliza a superação dos limites do ser humano. O recorde mundial da maratona, de 2014, é do queniano Dennis Kimetto, que levou duas horas, dois minutos e 57 segundos para atravessar a mítica distância de 42,195 quilômetros. Uma chance única de testemunhar a busca por romper essa barreira ocorrerá neste domingo, 24 de setembro, na 44ª edição da Maratona de Berlim, na Alemanha.
Os três melhores atletas da distância vão participar da competição, em um momento raro do esporte, porque os principais corredores costumam se dividir ao longo da temporada entre as provas mais relevantes do calendário. São eles os quenianos Eliud Kipchoge e Wilson Kipsang e o etíope Kenenisa Bekele. É impossível assegurar que o tempo seja alcançado no domingo, e o mais provável é que isso não aconteça, mas jamais houve ocasião mais propícia.
A Maratona de Berlim é uma espécie de 500 Milhas de Indianápolis das provas de rua. É a corrida mais rápida do mundo na distância. Os seis últimos recordes mundiais foram batidos na metrópole alemã, inclusive o que está em vigor, o de Kimetto. A prova em Berlim não é tradicional como a de Boston, a mais antiga do mundo, disputada desde 1897, nem tão glamourosa e popular quanto a de Nova York, que corta a Ilha de Manhattan e atrai mais de 50 000 competidores. Mas se consagrou como a que oferece as condições ideais a quem quer fazer seu melhor tempo, amadores e profissionais. O percurso é totalmente plano, sem subidas ou curvas fechadas que afetem o ritmo dos atletas. A temperatura nesta época do ano fica em torno de 15 graus, dentro, portanto, do intervalo de 10 a 16 graus, considerado o mais adequado para maximizar o desempenho do corpo humano em disputas de longa distância — basicamente, não é quente nem frio demais.
Não faz muito tempo, romper as duas horas parecia um feito longínquo. O estudo da evolução do recorde mundial no último século permitia projetar que um atleta só conseguiria completar a maratona abaixo de 120 minutos no fim da próxima década, possivelmente em 2028. Encolher o recorde, hoje, significaria reduzir em dois minutos e 58 segundos, de uma vez só, o tempo de Kimetto. Seria algo equivalente a um decréscimo de 2,4% do recorde atual. É um porcentual que levou dezesseis anos para ser alcançado, até chegar à marca do queniano, e isso por meio de oito quebras de recorde. Para alguns pesquisadores do esporte, correr os 42,195 quilômetros abaixo de duas horas esbarra nos limites do que o corpo humano é capaz de suportar: o esgotamento físico progressivo impede a manutenção do ritmo de prova necessário. Completar uma maratona abaixo de duas horas exigiria percorrer cada quilômetro em dois minutos e cinquenta segundos. O recorde de Kimetto foi conquistado com um ritmo médio de dois minutos e 55 segundos por quilômetro. É muita coisa.
Mas o avanço da tecnologia de materiais esportivos, o aprofundamento de pesquisas sobre o condicionamento humano e experimentos recentes sugerem que a conquista pode estar realmente próxima. Um consórcio global de universidades e instituições científicas montou o programa SUB2, para estudar tudo o que pode ser feito no campo da ciência para habilitar um atleta a alcançar essa marca. Mas nenhuma iniciativa mostrou tão claramente que o objetivo é factível como o projeto Breaking2 (em alusão à quebra do tempo de duas horas), da Nike. A empresa americana formou uma equipe de cientistas do esporte para analisar como incrementar o desempenho de atletas de elite com esse propósito, considerando desde estratégias de nutrição e hidratação até o controle da temperatura do corpo e da pele. E recrutou três atletas de elite para receber uma preparação durante seis meses, incluindo o melhor maratonista da atualidade, Kipchoge, 32 anos, que venceu sete das oito maratonas que já disputou, é o atual campeão olímpico e dono do terceiro melhor tempo da história na distância. A Nike também desenvolveu um tênis que, segundo a empresa, é o mais eficiente que já produziu, prometendo uma economia de energia de 4% para o atleta percorrer a distância — parece pouco, mas pode representar a conquista de preciosos segundos ao longo da maratona.
A tentativa de superar a marca ocorreu no Autódromo de Monza, na Itália, em maio passado. O local foi escolhido em virtude das condições consideradas mais apropriadas, tanto em termos de altimetria como de temperatura. Kipchoge, auxiliado por dezoito “coelhos” (a alcunha dos atletas que puxam o ritmo de provas) que formavam uma espécie de paredão que o protegia do vento, teve a melhor performance da história: correu a maratona em duas horas e 25 segundos. O tempo não foi homologado como recorde porque não atendeu aos critérios da Federação Internacional de Atletismo, que não permitem, por exemplo, o revezamento de coelhos. Alguns críticos da iniciativa também contestaram o uso do novo tênis, dotado de uma placa propulsora de fibra de carbono, apontando o que seria uma vantagem desleal sobre os competidores.
A maratona é a disputa mais tradicional do atletismo. Teve origem logo depois da Batalha de Maratona, em 490 a.C., na Grécia antiga. O soldado Fidípides teria sido encarregado de percorrer 42 quilômetros para anunciar a vitória dos atenienses sobre os persas. Morreu ao cumprir a missão. Não à toa, foi a prova de encerramento de muitas Olimpíadas da era moderna e consagrou atletas que se tornaram lendas, como o checo Emil Zátopek, a Locomotiva Humana, que ganhou a medalha de ouro em Helsinque 1952, e o etíope Abebe Bikila, bicampeão em Roma 1960 e Tóquio 1964. Na capital italiana, ele protagonizou uma das façanhas indeléveis da história do esporte, ao vencer correndo descalço. Mais recentemente, a partir dos anos 2000, a maratona foi se tornando palco do domínio de atletas da África Oriental, em especial do Quênia e da Etiópia. Há três anos Kipchoge, Kipsang e Bekele defendem essa hegemonia nas principais competições.
O avanço tecnológico é apontado por atletas e especialistas como um dos fatores decisivos para tornar possível correr a maratona em menos de duas horas. Isso ajuda a explicar — entre outros fatores, evidentemente — o envolvimento das grandes grifes esportivas. Além da Nike, a alemã Adidas anunciou, em fevereiro passado, o seu programa sub2, cuja primeira etapa foi o lançamento de um tênis mais leve, que também promete maior retorno de energia no momento da pisada. Resultado de cinco anos de pesquisas, o modelo teve uma estreia de gala na Maratona de Tóquio, também em fevereiro: a vitória de Kipsang, com o recorde da prova. O queniano de 35 anos utilizará o mesmo calçado, que ainda não chegou às lojas, em Berlim.
As duas provas formam uma espécie de Grand Slam das maratonas, junto com as que são realizadas em Nova York, Boston, Chicago e Londres. São chamadas de Majors. A diferença para o tênis de quadra e outras modalidades é que dificilmente um atleta disputa — e ganha — mais de duas provas no mesmo ano, dado o desgaste físico imposto aos corredores. As Majors ajudaram a popularizar as maratonas, e essa é mais uma razão para explicar o interesse de Nike, Adidas e outras marcas esportivas, como a japonesa Asics, pelas corridas de rua. Na década de 70, algumas dessas provas, como a de Nova York, reuniam apenas centenas de corredores. Atualmente, as seis maratonas, somadas, contam com mais de 250 000 participantes a cada ano. A Maratona de Berlim, neste domingo, terá quase 47 000. Mas somente três deles estarão próximos da consagração. Ainda que um novo recorde não venha no domingo, a história estará sendo feita, a passadas largas.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549