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O chinês incendiário

Pop star da arte e do ativismo, Ai Weiwei prova que se pode fazer arte política sem abdicar do humor e da poesia — e agora volta sua atenção para o Brasil

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 ago 2017, 06h00 - Publicado em 12 ago 2017, 06h00

DEPOIS DE ASSISTIR ao jogo entre Palmeiras e Atlético Paranaense (vitorioso por um gol), no domingo 6, o artista chinês Ai Weiwei viu-se inebriado pelo odor de carne assada das barracas nos arredores do estádio do Allianz Parque, em São Paulo. “É churrasquinho de gato”, informou o cicerone do artista no Brasil, o produtor Marcello Dantas. Para alguém vindo da China — país onde bichanos de verdade são apreciados como iguaria —, a piada não teve efeito de piada. “Gatos? Eu adoro”, respondeu Weiwei, enigmático. O episódio deu­-se em meio à agenda de extrema paparicação e pajelança da primeira viagem do mais celebrado nome da arte chinesa ao Brasil, após passagem pela Argentina e pelo Chile. Cada mergulho de Weiwei num evento resultou em um flash de sucesso nas redes sociais. Ele encarou desde jantar com figurões das artes até um encontro com o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa em que se consumiu certo cigarro suspeito. Vem mais Weiwei por aí. Ele voltará ao país em outubro para lançar seu filme Human Flow, que documenta o drama dos refugiados em várias partes do mundo. No ano que vem, empreenderá um giro pelo dito “Brasil profundo” em busca de material para a exposição que fará na Oca, também em São Paulo. No menu cultural dos próximos tempos, arroz de festa chinês será repasto incontornável.

O circo em torno de Weiwei é compreensível: ele é um pop star da arte contemporânea. Multidões formam filas para ver seus trabalhos de estupendo impacto visual, como a instalação feita com 100 milhões de réplicas de cerâmica de sementes de girassol exibida em 2010 pela Tate Modern, em Londres. “Ele já estava com mais de 40 anos quando despontou como artista. E chegou direto ao topo”, diz Marcello Dantas. Mas não é só a força extraordinária da obra que torna seu rosto reconhecível em escala globalizada. Por trás do barbudo bonachão de fala mansa, de 59 anos, há um dragão da militância política. As labaredas de Weiwei causam incômodo na ditadura comunista da China. Daí decorre o paradoxo: a estrela tão festejada (e festeira) das artes mundiais teve seu nome e seu trabalho deletados em seu país. “Sou proibido de me expressar e vender minhas obras. E a imprensa chinesa só se refere a mim como ‘aquele artista gordo’ ”, disse Weiwei a VEJA .

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A FORÇA SUBLIME –  A obra com réplicas de caranguejo e a escultura de cadeiras que parecem dançar balé: beleza na indignação (Ai Weiwei/Divulgação)

A opressão abateu-se sobre a vida de Weiwei bem cedo. Ele nasceu no início da chamada Grande Fome, que vitimou milhões, e ainda era criança quando, nos anos 60, o governo de Mao Tsé-tung impôs ao país o terror da Revolução Cultural. “A China era um lugar bem pior que a Coreia do Norte hoje. A população sofria uma lavagem cerebral violenta”, diz. A ignomínia maoista atingiu sua família: seu pai, o poeta Ai Qing (1910-1996), era um ídolo nacional e fazia as vezes de embaixador cultural da China pelo mundo até cair em desgraça. “De herói da pátria, meu pai passou a pária punido com a tarefa humilhante de limpar latrinas. Ter cultura e expressão individual era o pior crime que se poderia cometer na ditadura de Mao”, afirma o artista.

Nos anos 80, Weiwei saiu da China para estudar nos Estados Unidos, jurando que nunca mais poria os pés em seu país. Doze anos depois, mudou de ideia. “Senti o desejo de reencontrar minhas raízes e rever meus pais. E nunca me senti atraído pelo sonho americano”, diz. Ao retornar à China, ele se transmutou no artista-militante de hoje. Mas pagou caro pela audácia de fazer arte contestadora e falar o que pensava num blog. Ficou preso em paradeiro desconhecido por quase três meses e, em seguida, passou quatro anos em prisão domiciliar. Em dado momento, as autoridades deixaram que Weiwei construísse um estúdio milionário — para logo depois proibir suas atividades e mandar tratores pôr tudo abaixo. Weiwei transformou sua indignação em beleza: criou uma instalação composta de réplicas dos caranguejos que serviu no último jantar aos funcionários do estúdio. O lance mais notório de sua queda de braço com o regime foi a participação no projeto do Estádio Nacional de Pequim, o Ninho de Pássaro. As autoridades aprovaram o projeto de um escritório europeu sem saber que suas linhas tinham sido concebidas por Weiwei. “Até hoje tentam negar minha autoria. Nunca pisei no estádio”, diz.

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Ao pisar no campo do Palmeiras ao lado do filho de 8 anos, Ai Lao, e de um sobrinho, Weiwei não escondia a alegria de quem hoje vive longe da opressão. Há dois anos, exilou-se na Alemanha. Com a vinda à América do Sul, ele revive a viagem que seu pai fez ao Chile, nos anos 50, para ir ao encontro do poeta Pablo Neruda. A ligação com a poesia, aliás, é maior do que a mera reverência à figura paterna. Weiwei considera-se mais um poeta visual do que artista plástico — e o balé metrificado dos objetos reunidos em suas obras corrobora isso. Apesar da vida de pop star no Ocidente, ele diz que um dia voltará à China: “Minha mãe e meu povo ainda estão lá. E tenho quarenta gatos de estimação em Pequim”. Então pode se tranquilizar, leitor: esse chinês é incendiário, mas não come churrasquinho de gato.


“MINHA LUTA É SOLITÁRIA”

Em passagem por São Paulo, na semana passada, o chinês Ai Weiwei falou de arte e ativismo político em entrevista a VEJA.

ENFIM, LIVRE - Weiwei com o filho (à esq.) e o sobrinho: calar-se, jamais
ENFIM, LIVRE – Weiwei com o filho (à esq.) e o sobrinho: calar-se, jamais (Ai Weiwei/Divulgação)

Como se recorda de sua prisão pelo governo chinês, em 2011? Foi um horror. Botaram um saco preto na minha cabeça e me levaram para um lugar secreto, sem dar satisfação. Nessas horas, tentam provar que você está nas mãos deles. Não existe lei. Num quarto escuro, eu tinha de ficar sentado em posição rígida, sem piscar. Para tomar água e fazer xixi, precisava implorar a dois guardas. Não imagino outro nome para isso: é tortura. Fiquei 81 dias nessa condição.

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Os quatro anos seguintes, de prisão domiciliar, foram melhores? A tortura mudou de forma, mas continuou. Não podia sair de casa nem me comunicar ou usar a internet. Havia 24 câmeras me vigiando o tempo todo.

Por que seu trabalho incomoda tanto o governo chinês? Eles não estão nem aí para a arte. O que os incomoda é minha atividade na internet e o modo franco como falo sobre a China. Preocupam-se principalmente com minha influência sobre os jovens. Temem que isso desencadeie um movimento como a Primavera Árabe.

O senhor foi banido da China, mas é um pop star da arte fora do país. Como lida com o paradoxo? Certa vez, eles me disseram: você é tão famoso no Ocidente graças a nós. Eu respondi: sim, deveras. Mas o fato de um Estado tão poderoso valer-se de tudo para me calar prova a força do indivíduo na luta contra a opressão. Imagino que eles devam ter parado para pensar sobre isso. A verdade, porém, é que minha luta é solitária. Muitos outros artistas chineses foram reprimidos, mas preferiram silenciar. Sou o único que jamais admitiu se calar.

Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2017, edição nº 2543

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