No fundo do buraco
O ajuste, com aumento do déficit e arrocho no funcionalismo, é a prova de que o Estado está gordo — e só reformas vão tirar as contas públicas do atoleiro
A metáfora do Estado como um chefe de família que durante anos bancou todas as despesas da casa mas agora está sem dinheiro ajuda a ilustrar a situação do Brasil atual. O caixa da União ainda não entrou em colapso, mas caminha perigosamente nessa direção: o Brasil não consegue mais pagar todas as contas penduradas nele, que, independentemente do que acontece com as receitas, só aumentam. Os benefícios da Previdência (no setor público e no privado), os salários e privilégios dos funcionários públicos, os gastos obrigatórios em áreas fundamentais como saúde e educação, os programas assistenciais necessários para a população de baixa renda, os investimentos para fazer o país crescer, tudo isso somado vai além da capacidade do governo. É uma conta que está no vermelho desde 2014 e que, na melhor das hipóteses, só voltará ao azul em 2021. Ao longo desses sete anos o país vai gastar 818 bilhões de reais a mais do que tudo que terá obtido em impostos. Anunciada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, a revisão na meta do governo para as suas contas neste ano e em 2018, que subiu para um déficit fenomenal de 159 bilhões de reais, é sintoma de um mal mais profundo: o Estado brasileiro está à beira da falência — e, a continuar assim, levará junto o resto da economia. Isso porque, para pagar tantas contas, salários e benefícios, o governo apela quase sempre à saída cômoda do aumento de impostos sobre o resto dos brasileiros, as empresas e as famílias. A arrecadação de tributos equivale hoje a quase 40% do PIB, um nível próximo ao praticado em países ricos, mas a qualidade do serviço é compatível com a de uma economia em desenvolvimento.
O Brasil construiu um Estado paternalista que trata seus filhos de forma absolutamente desigual. Com a população em geral, é sovina. Os hospitais federais, por exemplo, reduziram recentemente os atendimentos em razão da queda de repasses do Sistema Único de Saúde (SUS). A situação de penúria de um lado contrasta com os privilégios concedidos a uma parcela dos 2,2 milhões de funcionários públicos que vivem à custa da União, em especial os que estão no Legislativo e no Judiciário. Cada um dos 513 deputados federais ganha um salário de 33 763 reais por mês. Com as verbas de auxílio-moradia e transporte, entre outras, o valor sobe para 83 628 reais. Suas excelências podem gastar ainda outros 97 000 reais para contratar até 25 assessores. Luxo ainda maior se encontra em setores do Judiciário. Mesmo com o teto constitucional, juízes e desembargadores podem receber mais de 100 000 reais por mês. Basta olhar as folhas salariais nos sites dos tribunais estaduais. Em Mato Grosso, descobriu-se um juiz de comarca que ganhou meio milhão de reais em julho — e ele achou normal porque substituiu uma colega de outra instância e, diante da indignação geral, mandou um recado objetivo: “Não estou nem aí”. A falta de bom-senso atinge o Ministério Público, instituição que tem contribuído de forma importante para o país. Procuradores da República, que ganham salário entre 29 000 e 33 700 reais, querem se autoconceder reajuste de 16% em meio à maior crise fiscal da história recente do país. Não são casos isolados. O Brasil mantém quase 100 000 cargos comissionados e de confiança, que dispensam concurso.
No imaginário popular, incluindo aí o que pensam alguns governantes, congressistas, magistrados e procuradores, o bolso do governo é ilimitado — pode tudo. O resultado é uma distribuição absurda de benesses e uma sucessão de brechas para a corrupção. O que aconteceria se a Petrobras tivesse sido privatizada quinze anos atrás? Haveria Lava-Jato? Se o governo fosse menor, haveria esse leilão político de cargos e verbas? É preciso encarar de vez a discussão sobre os infinitos órgãos que compõem a malha do poder público e os privilégios concedidos a uma parcela ínfima da população. Neste ano, por exemplo, o país vai abrir mão de 280 bilhões de reais com renúncias fiscais. A tentativa do governo de normalizar a cobrança de impostos de algumas empresas encontrou forte resistência do setor privado. “A indústria não quer pagar mais impostos, não abre mão dos créditos fiscais nem dos financiamentos com subsídio”, diz Marcos Lisboa, presidente do Insper. “É como se esses empresários entendessem que todo o sacrifício tem de ser dos outros.”
Nas aulas de história, fala-se que a diferença entre Brasil e Estados Unidos está no fato de que fomos colônia de exploração, e os americanos, colônia de povoamento. Mas há outra grande explicação para a visão de Estado que se tem por aqui em contraste com a dos EUA. Lá, a sociedade veio primeiro. Depois, ela se organizou e foi, aos poucos, construindo um Estado. Benjamin Franklin, um dos “pais fundadores”, ajudou a organizar as primeiras bibliotecas públicas, as polícias e o Corpo de Bombeiros. No Brasil, o Estado chegou primeiro, através da coroa portuguesa — e a sociedade veio depois. A situação do Estado paternalista se agravou ainda mais sob Getúlio Vargas e foi intensificada no período da ditadura militar, quando quase cinquenta estatais foram criadas. Para completar o quadro atual, a Constituição de 1988 instituiu muitos dos benefícios vigentes sem a correspondente receita.
Ao fechar no vermelho ano após ano, o governo fez a dívida pública crescer 50% em quatro anos, o que ampliou o risco de descontrole fiscal. Uma consequência foi o aumento das taxas de juros (o governo paga um retorno maior para atrair investidores), o que onera empresas e consumidores e impacta a própria dívida. De 2012 até o fim deste ano, as despesas do governo terão subido 20%, enquanto a economia encolheu 1,7%. Para equilibrar o caixa minimamente será imprescindível mudar as regras da Previdência, a principal fonte de despesas do Estado. Os gastos com o pagamento de aposentadorias e benefícios dobraram desde 2009, de modo que consomem mais de 40% do Orçamento federal. É uma conta que já está no vermelho e vai se agravar com o envelhecimento da população. “O governo tem de mostrar à sociedade quais as consequências de manter as coisas como estão”, diz Lisboa, do Insper. Ele faz alusão à situação de calamidade do Rio de Janeiro, onde os salários do funcionalismo e o pagamento de aposentadorias estão com atraso de meses por falta de recursos.
A experiência internacional mostra que é possível reduzir o tamanho do governo, apesar das resistências. Na Europa, que consagrou o Estado de bem-estar social, aquele que provê saúde e educação como serviços universais, o modelo passou por mudanças nos últimos anos por causa do forte desequilíbrio fiscal e da consequente crise econômica. Em Portugal, o governo cortou 30 000 cargos no funcionalismo público, aumentou a jornada dos servidores e reformou a Previdência, elevando a idade mínima de aposentadoria. Feriados nacionais foram anulados. Não é fácil cortar benefícios estabelecidos há décadas, mas essa é uma tendência que veio para ficar. O novo presidente da França, Emmanuel Macron, formalizou proposta para reduzir de 577 para 385 o número de deputados, e de 348 para 232 o de senadores. O objetivo é não só reduzir gastos, mas também racionalizar e agilizar a discussão de projetos.
No Brasil, o governo propôs medidas para enfrentar o problema, como a reforma trabalhista, já aprovada, e a da Previdência, ainda em discussão. Mas também fez escolhas que vão na contramão desse pensamento. Uma delas foi ter autorizado um reajuste salarial para 29 000 servidores e 38 000 aposentados e pensionistas do setor público até 2019 — e agora deve arrochar o funcionalismo, adiando um aumento salarial e elevando a alíquota da contribuição previdenciária de 11% para 14%. Está na hora de trilhar um só caminho — e parece que, ao menos no discurso, este governo agora está disposto a fazê-lo.
Com reportagem de Giovanni Magliano
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544