Ninguém mexe com ela
Como a mulher do traficante que manda e desmanda na favela da Rocinha, no Rio, deflagrou a fuzilaria que assusta a cidade
No avesso da triste realidade dos fatos, com escolas fechadas, ruas interrompidas e moradores aterrorizados, a guerra de bandidos que invadiu a favela da Rocinha, a maior do Rio, teve um estopim com cores de ficção de folhetim. A violência dos últimos dias brotou por intermédio de uma loira oxigenada: Danúbia de Souza Rangel, de 33 anos, foragida da polícia e assídua frequentadora de redes sociais. Ela é mulher do traficante Antônio Bonfim Lopes, o Nem, que está preso há seis anos mas continua dando as ordens no pedaço. Foi uma desfeita a Danúbia, por parte de um ex-braço-direito e hoje desafeto de Nem, que desencadeou toda a fuzilaria na Rocinha e escancarou a fragilidade da segurança pública no Rio.
O argumento da novela: a disputa por poder na Rocinha, um lucrativo entreposto de drogas para a Zona Sul carioca, onde vivem 70 000 pessoas, desenhou-se no início de agosto. Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, ex-segurança que virou preposto de Nem depois de sua prisão, vinha desconfiando que o chefe, mesmo encarcerado, planejava removê-lo do comando local. Preventivamente, retaliou em duas frentes: primeiro, matou três comparsas de Nem; em seguida, expulsou Danúbia da Rocinha. Mexer com a moça foi a gênese do confronto.
Danúbia é figura conhecida no submundo carioca. Nascida no Complexo da Maré, na Zona Norte, tem outros dois chefões do tráfico no currículo amoroso (ambos mortos em confronto com a polícia, daí o apelido de Viúva Negra). Em 2006, conheceu Nem em uma festa e se mudou para a Rocinha. Casaram-se, tiveram uma filha e a Viúva Negra virou a temida Xerifa, a quem o traficante presenteava com joias (uma delas, um cordão com a letra N pendurada), passeios de lancha e helicóptero e uma cobra de estimação, entre outros mimos. Em 2008, organizou para ela um show do rapper americano Ja Rule na favela. Escutas telefônicas revelam que ele a agredia por ciúme.
Depois da prisão do marido, Danúbia chegou a ser detida e liberada duas vezes. A segunda detenção, em março de 2016, ocorreu uma semana antes de ela ser condenada a 28 anos de prisão por associação ao tráfico. Mesmo foragida, circula em várias páginas de redes sociais, algumas com milhares de seguidores — embora não se saiba quantas e quais são, de fato, de sua autoria. As imagens mostram Danúbia de biquíni em praias e piscinas, exibindo o corpo moldado por musculação e silicone. “Fase ruim nenhuma vai me derrubar”, escreveu em mensagem três meses antes da guerra da Rocinha.
A disputa pelo controle do território resultou em uma semana de alta tensão, com tiroteios quase diários e interdição da Estrada Lagoa-Barra, que margeia a favela. A conta oficial é de três mortos e quatro feridos, mas testemunhas relatam uma carnificina bem maior no racha entre bandidos. O governador Luiz Fernando Pezão, acuado pelas críticas à inação da polícia, acabou apelando para as Forças Armadas, que há dois meses atuam na segurança do Rio. Por volta de 950 soldados e policiais cercaram o morro. Rogério 157 e seu bando embrenharam-se na mata densa e fugiram.
No mapa das quadrilhas do Rio de Janeiro, a Rocinha de Nem é território da Amigos dos Amigos (ADA) — uma facção que ensaia parceria com o PCC paulista. As forças de segurança acreditam que Rogério 157 tenha buscado refúgio em favelas da Zona Norte e nelas fechado aliança com o Comando Vermelho, o maior rival da ADA. A Rocinha, nesse contexto, é uma das frentes do confronto diário por território que esses dois bandos, e mais o Terceiro Comando, travam pelos morros do Rio, tirando proveito da triste conjunção atual de polícia enfraquecida e Estado à deriva.
Prova da desfaçatez do tráfico foi a proposta recente de Nem por intermédio de seu advogado, Jaime Fusco: se a polícia o transferisse para um presídio fluminense, garante, os roubos de carga e a criminalidade cairiam. Na falta de ações imediatas, a expectativa é que Rogério 157 volte à Rocinha, com reforços, para alimentar o conflito — um poço sem fundo de violência de onde o governo não parece saber sair. Segundo Ibis Pereira, ex-comandante da PM do Rio, a medida mais urgente é investir em ações de inteligência e integração em todos os níveis de poder. “É inaceitável a facilidade com que armas e munições circulam no Rio. As autoridades têm a obrigação de atacar a questão”, diz Pereira. Enquanto isso, a fuzilaria continua.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2017, edição nº2550