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Negros, preconceitos e ideologias

A dualidade entre a existência da discriminação e sua negação oficial caracteriza o estilo de nossas relações raciais

Por Fernando Henrique Cardoso*
Atualizado em 4 jun 2024, 19h08 - Publicado em 17 nov 2017, 06h00
(//VEJA)

Na segunda metade dos anos 1950 houve um seminário internacional no Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro sobre raça e preconceito. Apresentei alguns dados da pesquisa que fizéramos no Rio Grande do Sul, na sequência dos estudos sobre os negros em São Paulo comandados por Roger Bastide e Florestan Fernandes. Os dados eram eloquentes: não se precisava de muito número ou de retórica para comprovar a fragilidade da noção de que o Brasil era um país sem preconceitos raciais. No Sul, como em toda parte, as coisas eram mais complicadas.

Conto isso não para reafirmar um truísmo, mas porque, ao fim da reunião, o embaixador que a presidia me chamou e disse secamente: “Eu quase o expulsei da reunião”. “Por quê?”, perguntei. “Porque isso não é coisa que se diga diante de estrangeiros!” Deveria prevalecer a noção de que não temos preconceitos raciais…

Contudo, não devemos tratar as afirmações sobre nossa democracia racial como “mera ideologia”, disfarces da realidade. As ideologias contam no comportamento das pessoas. De alguma maneira os que dizem ao mundo que no Brasil não existe preconceito contra os negros confessam inconscientemente que seria melhor que não o tivéssemos. Repetem um chavão, que tem consequências: empurram o preconceito para a área não pública. Em privado, nas relações cotidianas, ele é o feijão com arroz; nas palavras oficiais não é permitido. Não por acaso o preconceito “é crime”, capitulado no código penal.

Estamos longe, portanto, do “apartheid” sul-africano ou de quando havia nos Estados Unidos, legalmente, o lugar para os negros nos ônibus, nas escolas ou onde mais a discriminação fosse posta em prática. A dualidade entre a existência do preconceito e sua negação oficial e mesmo cultural caracteriza o estilo de nossas relações raciais. Melhor ou pior do que nos países considerados racistas? Apenas diferente. O convívio se torna mais ameno (uma pessoa “educada” nem sequer se refere a “negros”, ou mesmo “mulatos”, sobretudo na presença deles). Ao mesmo tempo se torna mais difícil o reconhecimento da categorização racial, a menor ascensão social dos não brancos fica obscurecida e se torna mais dificultoso tomar medidas corretivas.

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Os dados são gritantes: as pesquisas genéticas comprovam, primeiro, que “raça” não se sustenta como conceito; segundo, que, no caso brasileiro, metade dos negros possui alguma dose de ancestralidade paterna europeia, e que os negros e mulatos, como também muitos brancos, têm altas dosagens de ancestralidade materna africana ou indígena. Nos estados do Sul, pode predominar a ancestralidade europeia por parte de pai e mãe; já nos estados em que houve exploração canavieira ou mineradora, a participação africana é maior, sobretudo na linhagem materna. Nos amazônicos, o mesmo ocorre com a participação indígena. A miscigenação é a regra. Logo, melhor afirmá-la como um valor e tratar de combater a discriminação e o preconceito, reconhecendo-os como parte negativa de nossa herança cultural.

O preconceito e o grau de discriminação prevalecentes no Brasil não são iguais, porém, ao que ocorreu nos Estados Unidos antes das lutas pelos direitos civis, ou ao que ainda ocorre em setores da sociedade e da cultura americana. As distinções no Brasil sempre foram mais de “marca” (a cor da pele ou o tipo de cabelo etc.) do que de sangue. Em certa época nos Estados Unidos bastava uma gota de sangue negro para que a pessoa fosse considerada como tal. A esse respeito há um diálogo (não sei se real ou imaginário) entre um diplomata europeu e um brasileiro. O europeu reparou criticamente: “Vocês não têm diplomatas negros”; ao que o brasileiro replicou: “Tampouco brancos”. O mesmo ocorre se olharmos com atenção a galeria de retratos dos presidentes da República, eu incluído… Alguns são mestiços, mesmo que não se reconheçam como tal.

Não há entre nós, por outro lado, distinções culturais nítidas entre uma “cultura branca” e uma “cultura negra”. Nossa miscigenação cultural é até maior do que a de sangue. Sem falar da religião ou da música, na qual há forte influência africana (embora também exista o “rock brasileiro”…), também o português falado no Brasil, tanto no vocabulário como na fonética, incorporou expressões e modos de dizer provenientes das várias línguas dos escravos, que vieram de etnias com línguas diferentes. Frequentemente se comunicavam entre si em português e, ao falar português com os brancos da terra, transmitiram a eles algo de seus idiomas. A essa mistura fonética e vocabular se somaram os modos de falar dos indígenas, dos italianos, espanhóis, alemães, poloneses, ucranianos, japoneses e de outros mais, como os que falam iídiche. Variavelmente, dependendo da região do país, eles deram tonalidades específicas ao português do Brasil. Essa variabilidade e diversidade nos são próprias.

Distintos segmentos da sociedade terão caracteres culturais específicos e mesmo estratificados. Contudo, não estamos lidando com “mera ideologia” ao afirmar nossa plasticidade cultural. Ela é, ao mesmo tempo, real e mistificadora. O preconceito continua jogando papel negativo. É importante lutar contra sua insidiosa presença até mesmo nos livros escolares e em múltiplas situações da vida brasileira. Assim como é importante a defesa de “cotas” para “negros” (autodefinidos) no serviço público ou nas universidades.

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Em uma sociedade minimamente democrática, todos devem ser iguais. Entretanto, tratar os desiguais como se fossem iguais é perpetuar as desigualdades. Os censos mostram que os “não brancos”, especialmente os negros, têm renda menor, menores oportunidades de emprego e acesso seletivo às posições mais importantes da sociedade. Há os que furam a barreira e chegam a ser governadores, prefeitos, artistas de renome, futebolistas ou empresários. A ascensão, entretanto, é recente e dificultosa. Só nas últimas décadas as TVs, por exemplo, mostram atores negros em papéis de destaque ou nos anúncios de propaganda. E a entrada nos clubes “exclusivos” e mesmo em locais sociais de prestígio, sem ser oficialmente proibida, é rara.

Melhor, portanto, denunciar os disfarces da desigualdade que repetem que “entre nós não há preconceitos” e valorizar o fato de sermos social, racial e culturalmente mestiços, sem transformar os “não mestiços” em objeto de discriminações. A democracia é também uma forma de integrar a sociedade em sua diversidade.

* Ex-presidente da República

Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557

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