Marx antes do marxismo
No bicentenário do pensador alemão, primeira biografia escrita por um historiador brasileiro permite conhecer suas ideias no contexto em que foram criadas
Um dos desafios de uma biografia de um grande pensador é apresentar sua vida e obra despidas de interpretações e leituras póstumas — descobrir a pessoa real por trás do mito. Com Karl Marx — cujo bicentenário de nascimento é lembrado neste sábado, 5 de maio —, a tarefa é especialmente difícil. O filósofo alemão não apenas influenciou a história do pensamento: também foi transformado na ideologia oficial de regimes que governaram metade do globo e de partidos e movimentos que ainda hoje lutam avidamente pelo poder. Só por isso, a maioria dos leitores já o ama ou o detesta de partida. Quebrar essa expectativa e nos apresentar o Marx anterior a qualquer marxismo ou antimarxismo é um grande mérito, e Angelo Segrillo, professor da USP, é bem-sucedido nessa tarefa em Karl Marx: uma Biografia Dialética, a primeira obra do gênero de um historiador brasileiro. Por ela, temos contato com um Marx que era só mais um indivíduo pensando, discutindo e buscando impactar o rumo dos acontecimentos na conturbada Europa de meados do século XIX, enquanto se esforçava por manter casa, família, saúde e relações sociais igualmente conturbadas.
O grosso do livro é dedicado a expor os temas e pontos principais das obras de Marx, como O Manifesto Comunista e seu grande (e inacabado) tratado sobre economia, O Capital, no contexto das idas e vindas da política de seu tempo. Na visão particular de Marx, eram as relações econômicas que determinavam as ideias vigentes na sociedade. Conforme o capitalismo exacerbasse a exploração dos trabalhadores, a revolução seria inevitável, assim como o triunfo do comunismo. Em sua época, Marx foi só mais um autor que se integrou à corrente comunista — e não era o mais popular ou influente, embora tivesse já seu séquito de seguidores (que não raro o irritavam). Sua fama, em vida, esteve ligada à Associação Internacional dos Trabalhadores (hoje conhecida como Primeira Internacional), na qual teve papel de destaque, e à Comuna de Paris de 1871 — embora os seguidores de Marx fossem, nessa revolta, uma ínfima minoria, ele escreveu um panfleto muito popular em defesa da comuna, o que levou a imprensa a vê-lo como a mente por trás da revolução. Saber surfar nas ondas da história é tão ou mais importante que causá-las. Mas foi só bem depois de sua morte — ocorrida em Londres, em 1883 —, quando o marxismo virou ideologia oficial da Rússia revolucionária a partir de 1917, que comunismo e Marx viraram sinônimos.
O lado pessoal da história é tão ou mais interessante. Marx foi um poço demasiado humano de incoerências, vícios e virtudes, com uma vida marcada por tragédias e doenças. Pensador genial mas incapaz de encontrar um trabalho fixo, era ao mesmo tempo um homem irascível, que comprava brigas completamente desnecessárias com aliados, e um pai, marido e amigo amoroso. De uma irresponsabilidade financeira inacreditável, dependeu sempre de seu fiel amigo Friedrich Engels (1820-1895) para sustentar-se. Coautor do Manifesto Comunista, Engels não só dava mesada a Marx, como também escreveu artigos em seu nome e aceitou assumir o filho bastardo do parceiro com a governanta da casa. Isso que é amizade!
A biografia revela um Marx bem-humorado — e capaz de grandes patetadas: quando recebeu a encomenda de um livro satirizando lideranças comunistas rivais, Marx cumpriu a tarefa com muito gosto. Depois descobriu que seu compêndio de fofocas e escárnios — para os quais era talentoso – fora encomenda de um espião do Império Austríaco em busca de informações sobre líderes subversivos da Europa. Marx tinha não só criado inimizades gratuitas como colaborado com um dos governos mais reacionários do continente. Nesse e em tantos outros casos, temos um Marx que não sabia as respostas; que estava, como todos nós, tateando, estimando, chutando, acertando às vezes e errando muito.
Algumas decisões editoriais da biografia poderiam ser revisadas, a começar pela divisão desequilibrada dos capítulos, que segue os lugares em que Marx morou — temos um capítulo de cinco páginas para os meses que passou em Kreuznach, e 184 páginas para Londres, mais da metade do livro num capítulo só. O estilo oscila entre certo academicismo, de um lado, e, de outro, coloquialismos exagerados, como chamar o biografado a todo momento por seu apelido, Mouro. Mas isso não compromete a narrativa, que apresenta com competência o pensamento e a vida de Marx.
O que resta, afinal, de Marx? Ainda hoje, ele é lido não apenas como um autor mortal, mas como oráculo a quem se vai em busca da Verdade. Uma parte desse apelo se deve à sua canonização pela União Soviética. Mas, para além do aspecto político, Marx tem algo muito atraente a oferecer a quem aspira ao mundo das ideias: a tentação da chave que abre todas as portas, a explicação definitiva dos rumos da história. Para arrematar, esse conhecimento ainda dá ao portador a certeza de estar do lado certo da história — embora hoje esse tipo de discurso seja mais um consolo para perdedores do que a certeza triunfal de quem sente a revolução se aproximando. Marx, o profeta, envelheceu mal.
Quando nos aproximamos de Marx sem toda a carga ideológica e mesmo religiosa do marxismo, aí, sim, podemos nos surpreender. Muito do que ele escreveu ficou obsoleto, mas há também o que continua a incitar a reflexão humana, como a sensação de que existe algo profundamente alienante nas relações de trabalho de uma economia moderna. Ou o insight de que as ideias, as leis e a cultura que circulam numa sociedade talvez sejam mais efeito do que causa das relações econômicas que nela vigoram. Por fim, o sonho de um mundo de igualdade plena continua a arder em muitos corações. É por isso que hoje, confrontados não mais com a máquina a carvão, mas com a automatização crescente que ameaça acabar com o trabalho humano, muitos olham de volta para Marx e se perguntam: “Será que desta vez vai dar certo?”.
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581