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O feminismo é necessariamente de esquerda? Existe feminismo de direita? Essas são questões prementes num contexto em que a polarização política corrói o debate público e afasta da agenda de defesa dos direitos das mulheres um número relevante de brasileiras e brasileiros. São frequentes os ataques de um conservadorismo inculto ao feminismo: supostamente seria tudo mi-mi-mi, vitimismo, exagero dos esquerdistas. Será?
O filme The Post, de Steven Spielberg, conta a história verídica de Katharine Graham, dona do The Washington Post. Interpretada por Meryl Streep, ela herdou o jornal após o suicídio do marido, o escolhido para comandar os negócios da família. Uma mulher na liderança era (e ainda é) uma exceção. Kay transpôs o empecilho informal ao avanço profissional das mulheres, a barreira invisível (glass ceiling, ou “telhado de vidro”, na expressão em inglês) ao sucesso feminino. O jornal teve papel central, nos anos 70, na divulgação da verdade sobre a guerra no Vietnã. Kay enfrentou seus demônios, o sexismo, o autoritarismo do presidente Nixon e pavimentou a avenida da democracia, da liberdade de imprensa e do respeito aos direitos das mulheres nos Estados Unidos. Um legado e tanto. O ponto que nos interessa é simples. Kay não era de esquerda. Era próxima dos republicanos, parte da elite da capital americana. Mas descobriu que os direitos das mulheres são uma agenda de todas. Que o telhado de vidro precisa ser estilhaçado e todas as pedras são bem-vindas.
Sarah Palin também não é de esquerda. Líder do Tea Party, a ex-governadora do Alasca é conhecida por suas posturas conservadoras. Palin se orgulha de ser ponta de lança do que chama de “novo feminismo conservador”. Defende ao seu modo uma agenda de direitos das mulheres, e afirma que nenhuma delas deveria ter de escolher entre a família e o trabalho. Desde 2006 ela integra o coletivo Feminists for Life. Sim, Sarah Palin se diz feminista e até faz parte de um coletivo feminista.
Margaret Thatcher, a dama de ferro inglesa e camisa 10 da seleção mundial de neoliberais, dizia não dever nada ao movimento feminista, mas lembrava sempre que, quando queria que algo fosse dito no mundo da política, pedia a um homem. Mas, quando queria que algo fosse efetivamente realizado, pedia a uma mulher. Sim, Thatcher defendia os direitos das mulheres. Bombardeou o telhado de vidro como bombardeou as Malvinas.
O feminismo não é um conjunto de movimentos obrigatoriamente de esquerda. É um equívoco, que mesmo esta colunista comete costumeiramente, fazer referência ao feminismo como um ideário só, monolítico. Existem feminismos. Muitos, de distintas matrizes e matizes. Somar-se a algum deles é nossa missão como mulheres. Apoiar algum deles é a missão dos homens. O machismo não tem partido nem ideologia. Está por toda parte e deve ser combatido em toda parte. O que queremos, mulheres de direita e de esquerda? Liberdade? Recorro a Clarice Lispector, a quem a esquerda que lhe foi contemporânea sempre chamou de “alienada demais”: liberdade é pouco, o que queremos ainda não tem nome.
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584