Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Há verdade na imaginação

O realismo não é a única maneira de falar sobre a realidade

Por José Francrisco Botelho
Atualizado em 4 jun 2024, 18h28 - Publicado em 24 nov 2017, 06h00

JOSEPH CONRAD (1857-1924) — escritor favorito de alguns de meus escritores favoritos — foi marujo antes de ser autor. A maioria de seus livros aborda os labores aquáticos que ele conheceu tão bem — é o caso de Coração das Trevas, inspirado em suas andanças pelo Rio Congo, e Lord Jim, fruto de suas navegações nas Índias Orientais. Por volta dos 45 anos, contudo, seu oceano de histórias secou. Bloqueado, Conrad convenceu-se de que já não tinha contos a contar. Para escapar à falência criativa, o veterano viajante, nascido na Polônia e naturalizado inglês, inventou um país que não consta nos mapas: a república sul-americana de Costaguana. Conrad mal conhecia a América do Sul; em suas rotas marítimas, havia apenas roçado o litoral da Colômbia e da Venezuela. Mas foi em nosso continente que ambientou Nostromo, clássico da aventura, parábola magistral do ceticismo político — e, para muitos críticos, a insuperada obra-prima do autor. Após uma carreira relatando o que vira com os próprios olhos, Conrad chegou ao ápice da arte em uma obra de rigorosa fantasia — alimentada por leituras e histórias coletadas de ouvido. Sua biografia literária parece inicialmente confirmar, para em seguida refutar, certa doutrina legada pelo realismo absoluto, longeva no Brasil: a de que somente a representação da realidade imediata confere seriedade à literatura, ou, em outras palavras, que só o vivido tem o pleno direito de ser escrito.

Não pretendo, é claro, desprezar a importância da experiência vital — ela embasa alguns de meus relatos favoritos, da Anábase, de Xenofonte, aos contos de Hemingway. Não custa lembrar, contudo, que a simples representação de fatos concretos, embora valha sempre como registro, não garante valor estético. Milhares de marinheiros cruzaram os mares no século XIX, em veleiros e barcos a vapor, mas apenas um escreveu Lord Jim. A imaginação verossímil é o que caracteriza o grande ficcionista e lhe permite transformar a observação do mundo em arte — não apenas por meio da réplica, mas também pela refração, pela ênfase, pelo símbolo e pela metáfora.

No entanto, há um certo sentido em que, de fato, só se pode escrever sobre o que se viveu. Franz Kafka, ao que se sabe, jamais foi perseguido por uma cabala de burocratas, nem acordou de sonhos intranquilos para descobrir-se transformado em um inseto monstruoso. Mas teve, sem dúvida, íntimo convívio com o absurdo, o deslocamento, o horror das convenções mecânicas quando sobrepostas ao indivíduo. Era disso que falava, entre outras coisas, ao escrever A Metamorfose e O Processo. Nesse sentido, tudo o que escrevemos é fruto da experiência; mas a experiência envolve também o que se leu, o que se ouviu, o que foi profundamente pensado e sentido. Nosso tema é o universo e nele tudo está abarcado: não apenas o círculo de passos possíveis que nos cerca e se move quando andamos, mas também aqueles outros mundos, carregados de verdade, que se acumulam nas profundezas da mente e às vezes vêm à tona.

Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.