JOSEPH CONRAD (1857-1924) — escritor favorito de alguns de meus escritores favoritos — foi marujo antes de ser autor. A maioria de seus livros aborda os labores aquáticos que ele conheceu tão bem — é o caso de Coração das Trevas, inspirado em suas andanças pelo Rio Congo, e Lord Jim, fruto de suas navegações nas Índias Orientais. Por volta dos 45 anos, contudo, seu oceano de histórias secou. Bloqueado, Conrad convenceu-se de que já não tinha contos a contar. Para escapar à falência criativa, o veterano viajante, nascido na Polônia e naturalizado inglês, inventou um país que não consta nos mapas: a república sul-americana de Costaguana. Conrad mal conhecia a América do Sul; em suas rotas marítimas, havia apenas roçado o litoral da Colômbia e da Venezuela. Mas foi em nosso continente que ambientou Nostromo, clássico da aventura, parábola magistral do ceticismo político — e, para muitos críticos, a insuperada obra-prima do autor. Após uma carreira relatando o que vira com os próprios olhos, Conrad chegou ao ápice da arte em uma obra de rigorosa fantasia — alimentada por leituras e histórias coletadas de ouvido. Sua biografia literária parece inicialmente confirmar, para em seguida refutar, certa doutrina legada pelo realismo absoluto, longeva no Brasil: a de que somente a representação da realidade imediata confere seriedade à literatura, ou, em outras palavras, que só o vivido tem o pleno direito de ser escrito.
Não pretendo, é claro, desprezar a importância da experiência vital — ela embasa alguns de meus relatos favoritos, da Anábase, de Xenofonte, aos contos de Hemingway. Não custa lembrar, contudo, que a simples representação de fatos concretos, embora valha sempre como registro, não garante valor estético. Milhares de marinheiros cruzaram os mares no século XIX, em veleiros e barcos a vapor, mas apenas um escreveu Lord Jim. A imaginação verossímil é o que caracteriza o grande ficcionista e lhe permite transformar a observação do mundo em arte — não apenas por meio da réplica, mas também pela refração, pela ênfase, pelo símbolo e pela metáfora.
No entanto, há um certo sentido em que, de fato, só se pode escrever sobre o que se viveu. Franz Kafka, ao que se sabe, jamais foi perseguido por uma cabala de burocratas, nem acordou de sonhos intranquilos para descobrir-se transformado em um inseto monstruoso. Mas teve, sem dúvida, íntimo convívio com o absurdo, o deslocamento, o horror das convenções mecânicas quando sobrepostas ao indivíduo. Era disso que falava, entre outras coisas, ao escrever A Metamorfose e O Processo. Nesse sentido, tudo o que escrevemos é fruto da experiência; mas a experiência envolve também o que se leu, o que se ouviu, o que foi profundamente pensado e sentido. Nosso tema é o universo e nele tudo está abarcado: não apenas o círculo de passos possíveis que nos cerca e se move quando andamos, mas também aqueles outros mundos, carregados de verdade, que se acumulam nas profundezas da mente e às vezes vêm à tona.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558