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Frestas para o passado

Selecionados pelo escritor Sérgio Rodrigues, os oitenta documentos de 'Cartas Brasileiras' constituem um painel descontínuo mas vigoroso da vida nacional

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h08 - Publicado em 15 dez 2017, 06h00
Cartas Brasileiras, organizado por Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras; 230 páginas; 99,90 reais)
Cartas Brasileiras, organizado por Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras; 230 páginas; 99,90 reais) (//Divulgação)

“Eu, senhor, razões políticas nunca as soube”, diz Antônio Vieira no início da carta que do Brasil enviou ao rei português em abril de 1654. Dom João IV consultara o padre sobre a conveniência de ter, no Maranhão, onde então pregava Vieira, um só governador ou dois capitães-mores. A resposta do grande jesuíta desmente sua alegada ignorância em matéria política: “Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultoso serão de achar dois homens de bem que um”. Vieira denuncia em seguida a situação dos “tristes índios” escravizados no Maranhão. Passados 294 anos, o tenente Cândido Rondon escrevia aos irmãos Villas-Bôas, seus companheiros da “causa indígena” que estavam em missão no Xingu. Recomendava especial cuidado na seleção do pessoal que ficaria encarregado de um acampamento na mata: “Homens sem cultura moral, em geral, não respeitarão as famílias dos índios”. A reticência do militar quanto ao tratamento que os brasileiros dispensavam aos índios no século XX parece ecoar a pesada crítica moral que o religioso fazia aos escravocratas do século XVII. A leitura em sequência dos oitenta documentos coletados pelo escritor e jornalista Sérgio Rodrigues em Cartas Brasileiras induz o feliz leitor a criar as mais ricas e inusitadas conexões e diálogos. É quase como se os correspondentes reunidos nesse bonito volume estivessem todos conversando entre si — e também conosco.

Inspirado por Cartas Extraordinárias, coletânea do inglês Shaun Usher, Sérgio Rodrigues, também autor de O Drible, foi a campo em busca dos melhores ou mais curiosos missivistas brasileiros (com alguns convidados estrangeiros, como Charles Darwin, que em 1832, na Bahia, escrevia ao pai para contar de seu deslumbramento com a natureza tropical). Organizadas não cronologicamente, mas segundo uma ordem subjetiva, na qual afinidades subterrâneas vão se desenhando, as oitenta cartas são uma colagem descontínua mas reveladora da vida nacional. “Terra de contrastes”, diz o clichê sobre o Brasil, e os contrastes são abundantes no livro. Compare-se, por exemplo, o virtuosismo barroco da carta de Vieira com a ortografia trôpega de Lampião (“vai aver muito estrago”) no bilhete em que ameaça o prefeito de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Ou a compunção da despedida do imperador deposto dom Pedro II em seu caminho para o exílio às queixas fisiológicas do então vice-presidente Michel Temer a Dilma Rousseff, nove meses antes do impeachment (datada de dezembro de 2015, esta é a carta mais recente do livro).

Serenidade – Machado de Assis a Nabuco, sobre a morte da esposa: “A solidão não me é enfadonha, antes me é grata”
Serenidade – Machado de Assis a Nabuco, sobre a morte da esposa: “A solidão não me é enfadonha, antes me é grata” (Biblioteca Nacional/)

Estão presentes os documentos históricos obrigatórios, como a carta em que o cafajeste Pero Vaz de Caminha conta ao rei Manuel I sobre a nudez das índias do Novo Mundo (é o texto mais longo da coletânea: quinze páginas). Ou as duas versões da carta-­testamento de Getúlio Vargas — a primeira, manuscrita e só divulgada anos mais tarde, vai temperada por uma amarga mágoa (começa clamando contra a “sanha dos inimigos”) e não traz o sentencioso “saio da vida para entrar na História”. Mais sereno e também mais triste é o bilhete de suicídio deixado por Stefan Zweig em Petrópolis, em 1942. “Minhas forças se exauriram nesses longos anos de errância sem pátria”, diz o escritor austríaco. Também exaurido, mas sereno, está Machado de Assis quando escreve, em 1904, ao amigo Joaquim Nabuco, para falar da solidão de sua casa sem a esposa, Carolina, que morrera naquele ano: “A solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela”.

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Também há humor, ironia, alegria. Vinicius de Moraes apresenta ao parceiro Chico Buarque várias mudanças em Valsinha (“dei uma apertada linda na sua letra”), e Chico, depois de recusar quase todas as alterações com meticulosa lucidez, sugere, em tom de brincadeira, que o poeta enfie a letra no ralo do banheiro — “ou noutro buraco que você tiver a mão”. Graciliano Ramos, mais irritado que apaixonado, declara seu amor à futura mulher, Heloísa. Mário de Andrade, missivista compulsivo, comparece em três cartas — na mais divertida, para Tarsila do Amaral, critica os modernistas brasileiros que, na França, “se parisianizaram na epiderme”. Há uma graça espontânea na carta que abre o livro, na qual uma adolescente pede ajuda ao presidente Juscelino Kubitschek em um trabalho escolar sobre Brasília. E hoje quase conseguimos rir da canhestra carta de 1970 em que membros da Congregação Mariana São Gonçalo, de São Paulo, pediam a Alfredo Buzaid, ministro da Justiça, mais rigor na censura às telenovelas.

Na apresentação do livro, o organizador descreve as cartas que selecionou como “cápsulas do tempo”. Como gênero literário e como meio de comunicação pessoal, a carta já pertence mesmo ao passado, a um tempo que foi carregado pelo “tsunami digital”, na expressão de Rodrigues. O solitário exemplar de carta divulgada por meio eletrônico — uma mensagem da cantora Mallu Magalhães a Gal Costa no Facebook — não está entre as peças mais eloquentes do livro. Não é o caso de idealizar o passado, mas vale a pergunta: de todos os memes e “lacrações” e “tretas” nas redes sociais, sobrará alguma coisa para compor, no futuro, um livro tão encantador quanto este Cartas Brasileiras?

Publicado em VEJA de 20 de dezembro de 2017, edição nº 2561

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