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Expulsar é a saída errada

Venezuelanos em fuga incham Pacaraima, em Roraima. A cidade não tem condições de recebê-los. O governo não age, ânimos se acirram e a xenofobia paira no ar

Por João Batista Jr., de Pacaraima, e Duda Teixeira
Atualizado em 4 jun 2024, 17h36 - Publicado em 24 ago 2018, 07h00

Depois de um fim de semana caótico, a população de Pacaraima, em Roraima, acalmou-se. Na quinta-feira 23, não havia ninguém dormindo na rua, o número de pedintes caíra drasticamente e os assaltos tinham parado. A tranquilidade, porém, não deve durar. Assim que baixar a poeira da violenta agressão de moradores que puseram em fuga os 1 200 refugiados venezuelanos amontoados na pequena cidade, o mais provável é que eles voltem, e sejam seguidos por muitos outros. Pacaraima é a porta de entrada no Brasil de venezuelanos desesperados, que não têm mais como sobreviver em seu país, esmagado pela pior crise de sua história, sem comida, remédios nem dinheiro. Para eles, emigrar não é escolha, é imperativo. Difícil é a população de Pacaraima, município de 12 000 habitantes, entender esse drama quando está imersa no próprio calvário: aumento da sujeira, das doenças e, principalmente, da criminalidade.

O estopim para a violência do fim de semana, quando moradores destruíram acampamentos de venezuelanos, queimaram seus pertences e ergueram barricadas na estrada de acesso à cidade, foi o assalto sofrido pelo comerciante Raimundo Nonato, 55 anos, figura conhecida e querida em Pacaraima. Ao chegar em sua casa, acompanhado da mulher, Nonato foi espancado e roubado. Tomou pauladas na cabeça e levou onze pontos. “Posso garantir: os quatro assaltantes eram venezuelanos”, afirma. A reação dos locais foi insuflada, como acontece com frequência nestes tempos, por uma fake news: a de que ele não havia resistido aos ferimentos e morrera. “Quando eu estava no hospital recebendo sangue, vi no WhatsApp que eu tinha morrido. Estavam comentando como seria meu enterro. Não sabia se ria ou se chorava”, disse Nonato.

Expulsar é a saída errada
Pivô da crise - A agressão aos refugiados em Pacaraima foi detonada pelo assalto sofrido por Raimundo Nonato ao chegar em casa com a mulher, que também apanhou. Ele garante que os bandidos eram venezuelanos. Levou pontos na cabeça e recebeu transfusão de sangue. “Mais dez minutos e eu morria. Sou diabético”, diz. Ironia do destino: antes de se fixar em Roraima, Nonato passou anos garimpando ouro na Venezuela. Tem, inclusive, cidadania venezuelana. (Rodrigo Salles/.)

Naquele dia, Pacaraima contava com uma viatura militar e três soldados armados de carabina para fiscalizar a fronteira. Depois do conflito, o governo — que em fevereiro, durante a visita do presidente Michel Temer ao estado, prometeu aumentar a presença das Forças Armadas para ajudar no acolhimento de imigrantes e não cumpriu — anunciou o envio de 120 integrantes da Força Nacional a Pacaraima. Dessa vez, cumpriu a promessa. Parte deles havia chegado na quinta-feira 23 e iniciado a montagem de centros de triagem. Mas os moradores não acreditam que a situação melhore com a presença da tropa.

Expulsar é a saída errada
Novo padrão - As irmãs Sandie e Glenda Almeida chegaram a Pacaraima há um ano, abriram uma padaria e moram em um sobrado pequeno. Deixaram para trás a imobiliária que possuíam e suas casas com piscina. “Nossa qualidade de vida caiu, mas vir para cá não foi opção, foi necessidade”, diz Glenda. Elas mandam dinheiro para a família que ficou na Venezuela. Também pagam a atravessadores para fazer chegar à mãe o remédio de uso diário que sumiu das farmácias de seu país. (Rodrigo Salles/.)

“Militarizar uma questão humanitária é um equívoco grave. Esse trabalho devia ser coordenado pelos ministérios envolvidos, junto com o governo e a sociedade civil de Roraima”, diz Camila Asano, coordenadora da Conectas, ONG de defesa de direitos humanos. Por dia, entram no Brasil entre 700 e 1 200 venezuelanos. No Comitê Nacional para os Refugiados, ligado ao Ministério da Justiça, repousam 35 000 pedidos de refúgio à espera de andamento. As leis internacionais rezam que é direito dos refugiados ser recebidos no Brasil e encaminhados para locais onde haja emprego e acomodação. A primeira parte é cumprida em Pacaraima; a outra cai no vazio. “A falha em acolher os venezuelanos é um problema que não irá embora e pode piorar”, alerta o embaixador Rubens Ricupero.

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(Arte/VEJA)

A professora Grisely Salazar, 40 anos, rodou dezessete horas de ônibus com a filha Valentina, de 1 ano e meio, até desembarcar no solo hostil de Pacaraima. Veio para ficar e aceita qualquer trabalho. “Deixei minha mãe, minha irmã. Espero poder trazer as duas para cá. No Brasil, por pior que seja, existe a possibilidade de melhorar. Na Venezuela, ao contrário, sempre podemos retroceder mais”, diz. O projeto de Grisely é seguir viagem — a tal “interiorização” que o governo também se comprometeu a promover (e também não cumpriu) na visita de Temer, pondo em movimento uma operação de transferência dos imigrantes para outros estados, como foi feito com a leva de haitianos que chegou ao Brasil em 2015.

A capital, Boa Vista, a maior cidade do estado menos populoso do Brasil, com 500 000 habitantes, fica a 210 quilômetros de distância. O transporte é precário e muitos venezuelanos estão fazendo o percurso a pé. Eles já representam mais de 10% da população de Roraima e a economia local não tem capacidade de absorvê-los. A metrópole regional, Manaus, é ainda mais inalcançável: fica a 780 quilômetros. Isso faz com que a acolhida dos venezuelanos seja mais problemática no Brasil do que na Colômbia e no Equador, as duas outras portas de saída dos vizinhos (veja o quadro ao lado).

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Sem trabalho e sem terem para onde ir, os venezuelanos em Roraima se aproximam da criminalidade. Mulheres se prostituem a 80 reais — são chamadas de ochenta. Muitos são recrutados pelas quadrilhas que disputam o comando do crime no Brasil, como o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e o fluminense Comando Vermelho (CV). Há dezenas de venezuelanos nas três prisões de Roraima, e muitos detidos já ostentam tatuagens de gangues. Eles se engajam principalmente no tráfico de drogas e de armas — revólveres, pistolas e fuzis são vendidos a preços baixíssimos na Venezuela. Dos 1 136 boletins de ocorrência registrados neste ano na delegacia de Pacaraima, 65% envolvem infratores vindos do país vizinho, acusados de roubo, furto, lesão corporal e ameaças. Famílias que viajam nos fins de semana encontram na volta a casa saqueada, sem aparelhos de TV, fogões e máquinas de lavar roupa. “Eles roubam essas coisas para montar sua casa ou para vender”, explica a delegada Simone Arruda.

“Eu já vi venezuelano assaltar, não vou negar. E tem brasileiro muito generoso conosco. Mas acordar com pedradas, isso nunca vou esquecer”, diz Jesus David Casillo, 38 anos. Ele, a mulher, Ilaine Barbosa, 28, e os dois filhos, 7 e 2 anos, dormiam em um acampamento improvisado quando foram atacados no fim de semana fatídico. A família voltou a pé para Santa Elena de Uairén, a cidade venezuelana mais próxima. Desde então, os quatro dormem na rodoviária de lá e cruzam a fronteira todo dia, caminhando ou de carona, para pedir esmola no Eldorado brasileiro. Em muito melhor situação, as irmãs Sandie e Glenda Almeida, donas de uma padaria em Pacaraima, contam que choraram ao ver os conterrâneos ser expulsos a pedradas. As duas, junto com o marido de Sandie, engenheiro, tinham uma imobiliária em Puerto Ordaz e trocaram as casas com piscina em que moravam por um sobrado apertado no Brasil. “Pelo menos comemos e pagamos as contas”, diz Sandie.

A explosão de violência em Pacaraima foi acompanhada de insistentes apelos pelo fechamento da fronteira. O governo de Roraima encaminhou ao Supremo Tribunal Federal um pedido nesse sentido, mas um parecer da Advocacia-Geral da União afirma que tal medida violaria tratados internacionais. Romero Jucá, senador de Roraima, quer estabelecer cotas de refugiados. Sem vislumbrarem uma solução e descrentes de uma ação efetiva do governo, os brasileiros reclamam, os ânimos se acirram e os discursos descambam para a xenofobia. “Os venezuelanos viraram bode expiatório. São culpados por problemas de educação, saúde e segurança que já existiam”, alerta o economista Elói Senhoras, da Universidade Federal de Roraima. O mais lamentável é o fato de que o crime organizado é mais rápido em cooptar parte dos venezuelanos do que o Estado brasileiro é capaz de acolhê-los. Em alguma medida, a crise em Roraima explica a criminalidade absurda do Brasil inteiro.

Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2018, edição nº 2597

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