Espírito liberto
Série 'Anne with an E', sobre órfã em busca de um lugar no mundo, renova clássico do século XX com estilo impressionista e iluminações psicológicas

Anne fala sem parar, em uma enxurrada de adjetivos e advérbios: tudo é “o mais maravilhoso”, “fantasticamente romântico”, “impossivelmente lindo”. Interpretada pela ruivinha e sardenta Amybeth McNulty com uma sinceridade que desconcerta, a órfã de 13 anos manifesta assim seu encanto com as belezas da Ilha Príncipe Edward, no Canadá, e tenta persuadir seus potenciais guardiões de que não é uma enjeitada triste, mas uma menina vibrante e grata. Suas duas súplicas: que a deixem ficar — ela foi entregue para adoção por engano à porta dos irmãos Marilla e Matthew Cuthbert (Geraldine James e R.H. Thomson), que haviam pedido por um garoto que os ajudasse com os trabalhos da fazenda — e que grafem seu nome com um “e” no final. “Anne”, acredita ela, é mais distinto do que “Ann”. E a protagonista de Anne with an E anseia por alguma distinção: sofrendo maus-tratos em orfanatos e casas de família desde a morte dos pais, ela procura um lugar no mundo que não seja transitório, e ao qual possa pertencer. Com uma vogal, Anne tenta deixar uma marca na comunidade de Príncipe Edward, para que esta custe mais, assim, a descartá-la.
Agora em sua segunda temporada — assim como a primeira, disponível na íntegra na Netflix —, esta adaptação do clássico infantojuvenil Anne of Green Gables (às vezes traduzido para o português como Anne da Ilha) demonstra como é possível não apenas honrar, mas até superar um original tão popular quanto a coleção iniciada em 1908 pela escritora canadense Lucy Maud Montgomery (1874-1942). Apoiando-se em um naturalismo que reproduz o constante estado de arrebatamento de Anne, a série ao mesmo tempo preserva sua matéria-prima e a renova com iluminações da psicologia de Anne: seu otimismo e sua excitação são fruto não só de temperamento, como também de desespero. Anne carrega traumas profundos, e teme acima de tudo ser obrigada a enfrentá-los mais uma vez. Com o pudor típico da época, Montgomery mal e mal sugeria os horrores que Anne teria vivido antes de chegar à casa dos Cuthbert. A criadora desta versão, Moira Walley-Beckett, opta por ser mais explícita. Produtora e roteirista de séries como Breaking Bad e Flesh and Bone, que não se furtam a olhar o mundo dos personagens pelos seus ângulos mais sombrios, Moira recupera, em flashbacks, o passado desalentador de sua jovem protagonista, para mostrar as marcas que ele deixou. Não raro, também, a série se afasta das tramas originais e propõe situações menos edulcoradas; nenhum passado poderia ser tão idílico quanto o descrito por Montgomery.
Fotografada de maneira voluptuosa, com verve impressionista para as paisagens e proximidade íntima dos personagens, em um estilo que lembra muito o do cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg no filme Longe Deste Insensato Mundo, Anne with an E encontra assim, nas entrelinhas, a verdadeira história da sua protagonista — que nunca foi uma história de otimismo invencível diante de toda adversidade, como a da Pollyanna publicada pouco depois, em 1913, mas sim uma história dos tormentos que se podem impor ao espírito e da sua difícil, mas embriagante, libertação.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591