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Diário de Roma

Coluna publicada em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 13 out 2017, 06h00 - Publicado em 13 out 2017, 06h00

Dias em que o princípio de outono se contamina de um rabicho de verão. Céu de um azul absoluto, noites frescas. Como o colunista também é filho de Deus, coube-lhe, ainda por cima, chegar em dia de lua cheia. O motorista do táxi, ao dar com ela numa curva, confessa-se um enamorato de la luna. Já a fotografou em diversas fases. Conta que uma vez a surpreendeu, em seu esplendor, sobre o Coliseu, e lamenta que naquela época ainda não andasse com o celular a postos para tais emergências. A lua e o Coliseu conhecem-se há 2 000 anos; prepararam para o motorista aquele encontro glorioso e ganharam a recompensa de ter o momento gravado em sua memória.

A exemplo do Rio de Janeiro em seus momentos mais críticos, Roma tem militares nas ruas. Dobram com os carabinieri o cuidado de dar proteção às levas de turistas. No Pantheon uma bonita soldada, junto a um carro de combate, mantém o dedo no gatilho da submetralhadora. Os soldados têm sempre o dedo no gatilho. Os carros de combate fazem ponto, no centro histórico, como se fossem táxis. Os turistas estão em toda parte. No imenso monumento a Vittorio Emanuele II, com seus muitos e altos patamares, no modelo do bolo de noiva, as multidões que vêm e voltam, avançam e recuam, sobem e descem pelas muitas escadas, corredores e terraços repetem, vistas de longe, o formigueiro humano de Serra Pelada.

Na feira da praça de San Cosimato, bairro do Trastevere, a vendedora de frutas e uma cliente conversam sobre o papa Francisco. “Ele é humano, um homem disponível”, diz a vendedora. Faltou dizer que Francisco é também divertido. Com base numa expressão popular argentina, ele enriqueceu a língua italiana com o neologismo balconare la vita. O significado é passar a vida num balcão, só a observar do alto e criticar os outros, sem se envolver. Francisco usou a expressão já duas vezes, em dias recentes, para criticar os que “balconam a vida”. Trata-se, segundo o escritor Paolo Di Paolo, em artigo no jornal La Repubblica, de uma expressão feliz, das que “não se limitam a descrever as coisas, mas as tocam e as fazem existir de modo diverso, deslocando a perspectiva de quem escuta”.

O Catar, não contente em comprar Neymar, comprou também o Estado­-Maior da Defesa italiana. A oportunidade para a segunda aquisição surgiu quando o Estado-Maior da Defesa mudou de seu antigo endereço para um novo complexo do Exército. Com isso ficou vago o histórico Palácio Caprara, com mais de 100 cômodos, e o Catar apressou-se em comprá-lo, para ali instalar sua embaixada. Antes, a embaixada dos Emirados Árabes Unidos também se mudara para um prestigioso edifício, agora exibido com exuberância de luzes na praça da Croce Rossa, e assim os novos potentados do Golfo avançam sobre os signos da riqueza dos velhos donos da Cidade Eterna. Não chegam a se igualar à França, cuja embaixada ocupa o Palácio Farnese, a mais bela das casas da nobreza papal; não chegam nem mesmo a se igualar ao Brasil, cuja bandeira enfeita a fachada do Palácio Pamphili, na Praça Navona; mas descobriram a importância dos palácios romanos como instrumentos de poder, ao lado dos times e jogadores de futebol.

No Campo dei Fiori a estátua do pobre Giordano Bruno é sitiada por todos os lados pelos toldos das barracas do mercado permanente que existe no local. Só se vê a cabeça, coberta pelo capuz do monge dominicano que um dia ele foi. Hoje o Campo dei Fiori, uma ampla e animada praça no centro de Roma, celebra a vida, com sua constante oferta de queijos, salames, frutas, temperos. Já foi celebração da morte, ao tempo em que ali se queimavam criminosos e hereges, entre os quais o mais célebre foi Bruno, filósofo que ousou transgredir os dogmas católicos e, não bastasse, defendeu, com seu prestígio de astrônomo, a tese de que no espaço coexistiam diversos mundos. O Campo dei Fiori ilustra as, digamos, errâncias do erro. Em 1600, quando foi morto, o erro era de Bruno, ao pensar fora dos trilhos da Contrarreforma; em 1889, quando se levantou uma estátua em sua memória, o erro passou a ser de seus algozes.

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Em contraste com o motorista atento à lua sobre o Coliseu, incluem-­ se entre os romanos massas incontáveis de distraídos. O ônibus que os traz do trabalho passa pela Coluna de Trajano e nenhum passageiro dá um grito de espanto. Contorna as Termas de Caracala e não há quem emita um mísero “ó!”. Encosta rente à Domus Aurea, passa ao largo das ruínas dos foros imperiais, dá de frente com os arcos do Teatro de Marcelo, e ninguém desmaia de emoção, ninguém se estrebucha, ninguém sequer morre! Entre nós brasileiros uma padaria que se alardeie “desde 1960” é uma relíquia histórica. Contada aos milênios, a história nos assombra e nos esmaga.

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552

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