Deus não joga bola
A lendária mão de Maradona foi sempre vista como uma vitória autorizada da malandragem — a introdução do árbitro de vídeo encerra essa era no futebol
No último sábado, 3, uma nova regra foi adicionada às leis do futebol. Oficializou-se a instituição do VAR, o árbitro assistente de vídeo. Sua nomenclatura deriva do acrônimo do nome em inglês (video assistant referee). É bom ir se acostumando com o VAR, que deverá aparecer diversas vezes na próxima Copa do Mundo, em junho e julho, na Rússia.
O recurso tecnológico já vinha sendo testado desde 2016, mas sua adoção em definitivo precisava ser ratificada pela International Football Association Board (Ifab), entidade criada em 1863 e que reúne as confederações fundadoras do esporte, além da própria Fifa. É de responsabilidade da Ifab sancionar qualquer modificação no regulamento do jogo.
Os inimigos das ferramentas eletrônicas no futebol amparam-se num raciocínio torto: o de que a interrupção das partidas para a avaliação de alguns lances com base nas imagens gravadas tornaria o jogo mais lento e aborrecido, ainda que mais justo. Bobagem, como se verá mais adiante neste texto. Alega-se, ainda, que a dúvida sobre determinado lance, a ser resolvida na mesa do bar, é o que dá charme ao futebol. Outra bobagem: hoje em dia, as dúvidas são esclarecidas pela TV nos segundos seguintes. Símbolo do tempo da malandragem autorizada foi o infame gol de mão de Maradona na Copa de 1986. “Com o VAR, meu gol contra a Inglaterra não teria valido”, admite o gênio argentino, para completar com ironia milongueira: “Mas não seria o único: a Inglaterra ganhou o Mundial de 1966 com uma bola que não cruzou a linha”.
O avanço agora aprovado foi lento. Em 2012, a Fifa deu o primeiro passo em direção à modernidade e permitiu o uso da tecnologia da linha do gol, que, graças a um chip instalado na bola, avisa ao árbitro se ela entrou. Foi um sucesso. Na última edição da Copa, em 2014, um gol da França contra Honduras só foi marcado graças à tecnologia. Deu-se então o impulso para outra inovação: a incorporação das imagens das câmeras de TV na tomada de decisão do árbitro. Nos últimos dois anos, diversas competições usaram o VAR em caráter de teste, entre elas os campeonatos alemão, italiano e português e a Copa Libertadores da América. A Fifa também já contou com o recurso no Mundial de Clubes e na Copa das Confederações de 2017. Embora sua incorporação não seja à prova de falhas — afinal, o sistema eletrônico é operado por humanos —, elas são estatisticamente marginais. Convém olhar para o passado para enxergar o futuro da inovação. Um estudo da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, analisou 972 partidas oficiais nas quais o VAR foi usado. Com a estatística, caíram os argumentos dos críticos do árbitro de vídeo — e derrubaram-se as alegações de que ele deixa o jogo lento.
O levantamento comprovou que em 69,1% das partidas analisadas o VAR não foi requisitado. Somente em 5,5% dos casos aconteceu mais de uma intervenção por jogo. E mais: o tempo médio em que a bola ficou parada para a consulta do vídeo foi de 55 segundos por partida. Bem abaixo daquele desperdiçado com faltas (8 minutos e 51 segundos), laterais (7 minutos e 2 segundos), tiros de meta (5 minutos e 46 segundos) e escanteios (3 minutos e 57 segundos). O argumento matador, porém, está na precisão do sistema. O VAR acertou 98,8% dos lances em que foi acionado — a Ifab considera impossível acertar 100%, devido à subjetividade e à interpretação de alguns lances mais cabeludos.
No Brasil, a novidade emperrou. A Confederação Brasileira de Futebol deu chance aos vinte clubes da primeira divisão de usar o árbitro de vídeo já na edição deste ano do Brasileirão. Mas cobraria 1 milhão de reais de cada equipe. Com a corda no pescoço, doze times votaram contra, e o plano não avançou. O VAR pode aparecer ainda neste ano em gramados brasileiros nas partidas finais da Copa do Brasil, com a conta paga pela CBF.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573