Crônica de um suicídio
O tormento do reitor que, levianamente acusado de integrar um “esquema criminoso”, foi preso, banido do câmpus e derrotado pelo peso da humilhação
Na noite do domingo 1º de outubro, um antigo cliente do Macarronada Italiana, de onde se avista a deslumbrante Baía Norte de Florianópolis, entrou no restaurante à procura de Zé. O garçom José de Andrade, de 63 anos, irrompeu no salão e aproximou-se para registrar em seu bloquinho o pedido de sempre do freguês de quase quatro décadas: talharim à bolonhesa.
— Não, Zé, hoje só vim te ver e tomar um café contigo.
O garçom percebeu um timbre diferente e retrucou:
— Te conheço, Cau. Você está bem?
Cau não estava bem, mas desconversou. Reclinou sua vasta figura de 1,90 metro e 85 quilos sobre o balcão e tomou um expresso em companhia de Zé, que percebeu outra estranheza: o silêncio incomum e prolongado do interlocutor. Dez minutos depois, Cau deu-lhe um abraço apertado, um beijo na bochecha esquerda e disse “adeus”.
Dali, Cau foi ao Shopping Beiramar, uma caixa de concreto de sete andares, subiu até o último piso e andou em torno das escadas rolantes mirando lá embaixo, como quem calcula o território. Caminhou duas, três, cinco vezes ao todo. E decidiu ir ao cinema. Assistiu a Feito na América, o mais recente filme de Tom Cruise, e voltou para casa. No dia seguinte, na última manhã de sua vida, Cau deixou seu apartamento, no bairro de Trindade, e pegou um táxi. No meio do caminho, talvez à espera de que o shopping abrisse as portas, às 10 horas, encerrou a corrida na Praça dos Namorados, onde costumava levar o filho quando pequeno. Sentou-se num banco. Uma conhecida o cumprimentou, ele perguntou as horas. Eram 9h20. Quando o shopping abriu, Cau não demorou a chegar. Cruzou com um estudante universitário, a quem saudou protocolarmente, e tomou o elevador até o 7º andar. As câmeras de segurança do shopping captaram o momento em que Cau, sem nenhuma hesitação, se postou na escada rolante, colocou as mãos no corrimão de borracha, em seguida subiu ali com os dois pés — e jogou-se no vão da escada, projetando-se no precipício. Despencou de uma altura de 37 metros, a uma velocidade de 97 quilômetros por hora. Seu corpo bateu no chão como se tivesse 458 quilos. Ele morreu na hora, às 10h38 de 2 de outubro de 2017.
O suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, aos 59 anos, o Cau, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o desfecho trágico de dezoito dias dramáticos. Sua vida começou a desabar na manhã de 14 de setembro, quando agentes da Polícia Federal deflagraram a Operação Ouvidos Moucos, com o objetivo de apurar desvios de verbas para cursos de ensino a distância na UFSC. Às 6h30 daquela quinta-feira, o reitor ouviu tocar a campainha de seu apartamento e, enrolado em uma toalha de banho, abriu a porta para três agentes da PF, que subiram sem se fazer anunciar pelo porteiro do edifício. Os agentes traziam dois mandados — um de prisão temporária e o outro de busca e apreensão. Recolheram o tablet e o celular do reitor e conduziram-no à sede da Polícia Federal em Florianópolis, dentro de uma viatura.
Atônito, sem entender o que estava acontecendo, o reitor só se lembrou de chamar um advogado quando estava prestes a começar seu depoimento, às 8h30. Durante as cinco horas em que foi arguido, passou duas sem saber por que estava à beira da prisão. Ainda respondia a perguntas sobre os meandros operacionais do ensino a distância, com o estômago embrulhado pelo jejum matinal e pelo tormento das circunstâncias, quando a delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da força-tarefa da Lava-Jato, à frente agora da Ouvidos Moucos, adentrou o local. Apressada para iniciar a coletiva de imprensa que começaria logo mais, Érika finalmente esclareceu ao interrogado o motivo de tudo aquilo: “O senhor não está sendo investigado pelos desvios, mas por obstrução das apurações”. E correu para comandar o microfone na sala ao lado.
Desde cedo, já voava nas redes sociais a notícia de que a Polícia Federal deflagrara uma operação de combate a uma roubalheira milionária na UFSC. A página oficial da PF no Facebook, seguida por 2,6 milhões de pessoas, destacava a Ouvidos Moucos: “Combate de desvio de mais de 80 milhões de reais de recursos para a educação a distância”. Ainda acrescentava duas hashtags para celebrar a ação: “#euconfionapf” e “#issoaquiépf”. A euforia não encontrava eco nos fatos. Na coletiva, a delegada Érika explicou que, na realidade, não havia desvio de 80 milhões de reais. O valor referia-se ao total dos repasses do governo federal ao programa de ensino a distância da UFSC ao longo de uma década, de 2005 e 2015, mas não soube dizer de quanto era, afinal, o montante do desvio. Como a PF não se deu ao trabalho — até hoje — de corrigir a cifra na sua página do Facebook, os 80 milhões colaram na biografia do reitor. Em seu velório, uma aluna socou o caixão e bradou: “Cadê os 80 milhões?”.
Encerrado seu depoimento, o reitor deveria ficar retido na sede da PF, mas, como a carceragem havia sido desativada, foi para a Penitenciária de Florianópolis, um complexo de quatro pavilhões construído em 1930. Acorrentaram seus pés, algemaram suas mãos e, posto nu, ele foi submetido a revista íntima. Um dos agentes ironizou: “Viu, gente, também prendemos professores!”. Cancellier vestiu o uniforme laranja, foi fichado e passou a noite em claro. Seus dois colegas de cela, presos na mesma operação, choravam copiosamente. Cancellier estava mudo, como que em transe, e cada vez mais sobressaltado com os rigores do cárcere. Ficou trinta horas na cela na ala de segurança máxima. Teve sintomas de taquicardia: suava muito e a pressão disparou para 17 por 8. Seu cardiologista foi autorizado a examiná-lo, trazendo os remédios que ele havia deixado em casa (desde dezembro, quando implantou dois stents, Cau tomava oito medicamentos).
Quando deixou a cela, Cancellier era um homem marcado a ferro pela humilhação da prisão. Sua família o recebeu em clima de festa e alívio. Os irmãos, Julio e Acioli, tinham comprado de tudo um pouco no Macarronada Italiana para um jantar regado a vinho branco Canciller, rótulo argentino escolhido pela similaridade com o nome de origem italiana da família. Também ali estava o filho do reitor, Mikhail, de 30 anos, doutor em direito como o pai, com quem ele mantinha um laço inquebrantável. Mas, entre piadas e risos, Cancellier exibia um semblante sem expressão. “Ele estava chocado. Revivia aquelas cenas o tempo todo”, lembra o irmão Julio, jornalista de 51 anos. Mais que tudo, o reitor estava sendo esmagado pelo peso da proibição de pisar na universidade até o final das investigações. A decisão fora tomada junto com o mandado de prisão e, para o reitor, soou como uma punição cruel.
Depois de ter visto seu nome nas manchetes do noticiário na internet e na TV, Cancellier deu boa-noite a todos e recolheu-se. Não era um homem aliviado pelo fim do martírio da prisão nem reconfortado pelo reencontro com a liberdade. Deixou o jantar como um derrotado. Um dos convivas, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, de 58 anos, amigo da infância pobre passada em Tubarão, a 130 quilômetros de Florianópolis, percebeu o peso que o reitor carregava. “Ele entendeu que o episódio deixaria uma marca incontornável em sua biografia”, diz Andrade, colega de colégio de Cancellier.
A UFSC era uma extensão da casa do reitor. Seu apartamento, de três cômodos, onde viveu dezenove anos, dois deles casado e o restante na companhia do filho, fica a 230 passos do câmpus. Nos fins de semana, o reitor fazia uma ronda informal, bem à vontade em seu moletom. Na UFSC, ele teve, para os padrões acadêmicos, uma carreira meteórica. Em apenas dezoito anos, concluiu o curso de direito, fez mestrado, fez doutorado em direito administrativo, virou diretor do Centro de Ciências Jurídicas e, numa eleição acirrada, elegeu-se reitor — cargo que ocuparia por dezesseis meses. Na eleição, a paciência para tecer alianças foi arma decisiva em um jogo embaralhado. “Ele não era um orador brilhante, mas era um articulador que conseguia trazer para o mesmo lado gente de todos os espectros ideológicos”, define o amigo Nelson Wedekin, de 73 anos, ex-senador pelo PMDB local.
Desde a juventude, a rotina universitária era a bússola da vida de Cancellier. Em 1977, aos 19 anos, época em que fazia política estudantil com o cabelo desgrenhado e bolsa de couro a tiracolo, ele se encantou com a universidade. “Não quero nunca sair daqui”, confessou ao amigo Osvaldir Ramos, hoje presidente do Conselho Estadual de Educação em Santa Catarina. Acabou forçado a sair, no regime militar, em decorrência de sua militância no Partido Comunista Brasileiro, o antigo Partidão, e da chamada novembrada: em 30 de novembro de 1979, o presidente João Figueiredo, o último ditador do ciclo militar, baixou em Florianópolis, bateu boca com estudantes na rua e o episódio terminou em pancadaria e prisões. Cancellier teve de desaparecer da faculdade de direito. Ressurgiu cinco meses depois trabalhando em um jornal e acabou tornando-se assessor de políticos, inclusive de Wedekin, função que o levou a se mudar para Brasília. Só voltou à UFSC em 2000, aos 42 anos, para cumprir uma fulminante trajetória acadêmica — e ser de novo expelido da universidade, agora em plena democracia e na condição de reitor, num banimento que lhe pesou como uma suprema humilhação. No muro da universidade, um anônimo grafitou: “Fora Cancellier”.
“A humilhação é a bomba nuclear das emoções”, afirma a psicóloga alemã Evelin Lindner, uma autoridade mundial num ramo da psicologia que estuda o peso da vexação em sociedade e sua relação com atos de violência — como o terrorismo e o suicídio, que, não por acaso, andam juntos. Se a culpa é uma dor que vem de dentro, a humilhação é como uma dor que vem de fora, imposta pelo olhar alheio. É sentida como uma falência em público. Sai cortando fundo no orgulho, na honra, na dignidade, e tende a ficar marcada como uma cicatriz. Escreve o psiquiatra Neel Burton, professor em Oxford e autor do livro Heaven and Hell: The Psychology of the Emotions (Céu e Inferno: a Psicologia das Emoções): “As pessoas que foram humilhadas carregam a marca da humilhação, são lembradas pela humilhação. Em um sentido muito real, elas se tornam a própria humilhação que sofreram”.
Os estudos científicos sugerem que, quando estão em jogo elementos que constituem a razão de ser de uma pessoa, como princípios, posição ou status, o peso da vergonha pode até desfigurar a identidade pessoal e tornar-se insuportável. “Em alguns casos, ser submetido a uma situação vexaminosa gera condutas irracionais e pode desencadear uma resposta violenta, como o suicídio”, diz o professor Helio Deliberador, do departamento de psicologia social da PUC de São Paulo. O filho mais velho de Bernard Madoff, um dos nomes mais cintilantes de Wall Street, suicidou-se depois da descoberta de que seu pai era, na verdade, um farsante que aplicara golpes bilionários. Jacintha Saldanha, enfermeira em um hospital onde a duquesa Kate esteve internada em 2012, caiu no trote de radialistas australianos que se fizeram passar pela rainha da Inglaterra, facilitou o acesso a dados sobre o estado de saúde da duquesa e foi publicamente achincalhada. Matou-se aos 46 anos. Como escreveu Albert Camus em Mito de Sísifo: Ensaio sobre o Absurdo: “Matar-se, em certo sentido, é confessar que se é ultrapassado pela vida e que não a compreendemos”.
Nos dias que se seguiram à sua soltura, Cancellier começou a ser ultrapassado pela vida. “Passou a alternar momentos em que achava que ficaria tudo bem com outros em que mergulhava no desânimo”, diz o ex-senador Wedekin. Em 16 de setembro, dois dias depois da prisão, seu irmão Acioli levou-o para falar com advogados. Ao entrar e sair do táxi, Cancellier tremia, com medo de ser reconhecido na rua e hostilizado. Com o celular confiscado pela PF, quase não atendia o telefone fixo de casa. Não ligava a TV e, ao irmão Julio, disse que cometera “suicídio digital”, pois retirara fotos do Facebook e parara de navegar nas redes sociais. Ensimesmou-se a tal ponto que os irmãos decidiram levá-lo a uma psiquiatra, a primeira vez na vida que buscava ajuda dessa natureza.
A consulta com a médica Amanda Rufino ocorreu em 19 de setembro, cinco dias depois da prisão. Ele saiu de lá com o diagnóstico de “sintomas de stress pós-traumático desencadeados por impactante fator estressor no âmbito profissional” e um quadro de “intensa sensação de angústia, de opressão no peito e taquicardia”. A psiquiatra prescreveu um ansiolítico e um antidepressivo, ambos em doses moderadas. Cancellier tomou obedientemente os remédios e voltou à médica em 29 de setembro, a três dias do suicídio. Ao final da segunda consulta, a psiquiatra comentou com um dos irmãos do reitor que a situação parecia sob controle. “O quadro está evoluindo bem”, disse. A João dos Passos, procurador-geral do estado, o reitor deu uma pista do que sentia: “Vou te confidenciar, João. Meu estado é de pós-catástrofe, como se eu fosse o sobrevivente de uma queda de avião. Não consigo me situar, raciocinar direito”. O amigo Lédio Andrade, com quem o reitor jogava xadrez, descreve um Cancellier irreconhecível: “Seu raciocínio ficou lento e os olhos fixavam o infinito. Não parecia o Cau”.
Em situações normais, o reitor tinha entusiasmadas conversas sobre Shakespeare, Freud e o cristianismo, temas que despertavam sua curiosidade intelectual. Agora, nada parecia atrair seu interesse. O irmão Acioli, engenheiro que mora em São José dos Campos, tentando tirá-lo da clausura de si mesmo, alugou um Fiat Uno e provocou: “Agora você vai me mostrar essa ilha”. Era sempre o irmão ao volante, pois Cancellier, apesar de ter carteira de motorista, só dirigia moto. Nesses passeios, o reitor até relaxava, mas logo voltava a cerrar-se em casa.
Em Foz do Iguaçu, sua ex-mulher, Cristiana Jacquenin, de 48 anos, externou seu temor aos mais chegados: “Tenho medo do que ele possa fazer. Ele não vai aguentar ficar longe da universidade, é a vida dele”. Crica, como Cancelllier a chamava, foi uma paixão fulminante — em dois meses, eles subiram ao altar, ele com 28 anos, ela com 18. Conheceram-se no jornal O Estado (que já não existe) e, apesar da separação, mantiveram um elo até o fim. Ela afirma: “Aquela humilhação toda atingiu o Cau. Era como se alguém acertasse com uma bazuca uma escultura de pecinhas bem encaixadas que nunca mais se rearranjariam”.
A Polícia Federal pediu a prisão de Cancellier e outras seis pessoas da UFSC com base em um relatório de 126 páginas. Nele, o reitor é acusado de tentar obstruir as investigações da universidade sobre os desvios de dinheiro com base em apenas dois depoimentos. Em um deles, Taisa Dias, coordenadora do curso de administração, contou à polícia que, certo dia, levou ao reitor suspeitas de uso indevido de verbas no curso que coordena. Cancellier, segundo ela, perguntou se aquilo não seria um “problema de gestão” e, em seguida, lhe disse o seguinte: “Guarda essa pastinha”. Taisa entendeu que, com essa frase, o reitor estava querendo enterrar as investigações. A Polícia Federal, por sua vez, considerou a interpretação de Taisa como uma suspeita suficientemente clara de que Cancellier queria embolar a apuração. A defesa do reitor admite a conversa com Taisa, mas afirma que, ao dizer “guarda essa pastinha”, ele queria lhe pedir apenas cautela nas apurações e nas acusações. Ao reitor, nada foi perguntado sobre suas intenções, antes de ele ser preso.
O outro depoimento foi prestado pelo corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, um senhor calvo de olhos claros que nunca altera o tom de voz e fez fama de investigador obsessivo no câmpus da universidade. Em novembro do ano passado, o centro acadêmico da faculdade de engenharia postou no Facebook um texto que dizia que a universidade mantinha uma lógica desigual, punitiva para alunos e benevolente para professores. Hickel do Prado debruçou-se sobre a questão. Queria entender o que era aquela lógica desigual. Convocou nada menos do que uma centena de estudantes para depor. A apuração se encerrou sem nada concluir, mas ajudou a sublinhar sua fúria investigativa. Aos que lhe censuram o ímpeto de xerife, Hickel do Prado rebate com segurança pétrea: “Quem faz tudo certo não tem por que ter medo de nada”. (Na terça-feira 7, o corregedor pediu licença médica de dois meses da universidade.)
Em seu depoimento, Hickel do Prado fez cinco acusações ao reitor. Disse que ele lhe recomendou que instalasse uma sindicância, em vez de abrir um processo administrativo, e tentou subordiná-lo a uma secretaria ligada à reitoria. (A defesa do reitor confirma as duas providências, mas diz que eram uma tentativa de evitar os conhecidos excessos do corregedor, e não de sabotar a investigação.) Também afirmou que ele cortou sua remuneração numa “tentativa de constrangê-lo”. (A defesa do reitor afirma que houve uma ampla reforma na UFSC com cortes na remuneração de vários cargos comissionados, e não uma medida exclusiva contra o corregedor.) Ainda acusou o reitor de tê-lo chamado para uma conversa reservada na qual lhe pediu que não apurasse as suspeitas. (A defesa do reitor nega que a conversa tenha existido.) E, por fim, disse que ele lhe pediu para ter acesso formal às investigações depois de ter visitado a Capes, órgão federal que financia o sistema de pós-graduação no Brasil, que havia acabado de cortar as verbas para o programa de educação a distância da UFSC. (A defesa do reitor confirma que ele pediu acesso às investigações exatamente para saber as razões que levaram a Capes a cortar as verbas.)
A polícia não ouviu as explicações do reitor, antes de pedir sua prisão. Ainda que os dois depoimentos se limitassem a acusá-lo de tentar obstruir as investigações, a polícia incluiu o nome do reitor em uma lista de doze pessoas suspeitas de terem tido “efetiva participação na implementação, controle e benefício do esquema criminoso”. Não há no inquérito nenhum indício ou acusação de que o reitor fosse membro do “esquema criminoso”, nem mesmo a descrição do que poderia vir a ser esse “esquema criminoso”. VEJA perguntou à Polícia Federal por que Cancellier foi apontado como integrante da quadrilha, mas a PF preferiu não responder.
No final do relatório, na página 123, estão as cinco razões para prender o reitor. O texto afirma que ele:
- “Criou a Secretaria de Educação a Distância para estar acima do já existente Núcleo Universidade Aberta, vinculando-a diretamente à reitoria.” (O inquérito não traz nenhuma prova de que a criação da secretaria tenha relação com desvios de verba.)
- “Nomeou no âmbito do EaD (educação a distância) os professores do grupo que mantiveram a política de desvios e direcionamento nos pagamentos das bolsas do EaD.” (O reitor, ao assumir o cargo, fez mais de cinquenta nomeações. No âmbito do EaD, fez apenas três, e outros três professores que já integravam o grupo antes mesmo de sua gestão foram mantidos.)
- “Procurou obstaculizar as tentativas internas sobre as irregularidades na gestão de recursos do EaD.” (O inquérito, neste caso, baseia-se no depoimento da coordenadora Taisa Dias e do corregedor Hickel do Prado.)
- “Pressionou para a saída da professora Taisa Dias do cargo de coordenadora do EaD do curso de administração.” (É uma afirmação gratuita. O inquérito não informa de onde saiu essa suspeita nem aponta nenhum elemento que lhe dê consistência.)
- “Recebeu bolsa do EaD via Capes e via Fapeu.” (O inquérito também não informa de onde saiu essa suspeita, nem mesmo se existiu alguma irregularidade na concessão das bolsas.)
A juíza Janaína Cassol, da 1ª Vara Federal de Florianópolis, analisou o pedido da PF em 25 de agosto e concedeu as prisões. Sobre o reitor e os outros seis acusados, ela escreveu: “Essas pessoas podem efetivamente interferir na coleta das provas, combinar versões e, mais do que já fizeram, intimidar os docentes vitimados pelo grupo criminoso”. Em 12 de setembro, a juíza pediu licença por problemas de saúde e foi substituída por Marjorie Freiberger. Dois dias depois, em 14 de setembro, a polícia lançou a Operação Ouvidos Moucos e prendeu o reitor e os outros seis. No dia seguinte às prisões, a juíza Marjorie Freiberger, sem que houvesse recurso da defesa do reitor e dos outros seis, resolveu revogar a decisão de sua colega e suspendeu as prisões. Ao contrário da antecessora, a juíza Marjorie não conseguiu ver motivo para tê-los levado para a penitenciária. Escreveu ela: “No presente caso, a delegada da Polícia Federal (refere-se a Érika Marena) não apresentou fatos específicos dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigação e futuras inquirições”. Mandou libertar todo mundo. Até hoje, a advogada do reitor, Nívea Cademartori, não entende por que seu cliente foi preso sem que tivesse a chance de se explicar. “Bastaria que a PF intimasse o reitor para depor, o que seria imediatamente atendido. Há uma banalização das prisões temporárias no país.”
Em seus últimos dias, Cancellier chegou a dar sinais de que não abandonaria o ringue. Em artigo publicado no jornal O Globo em 28 de setembro, quatro dias antes do suicídio, saiu em defesa própria e dos demais professores presos: “A humilhação e o vexame a que fomos submetidos há uma semana não têm precedentes na história da instituição”. O reitor também tentou recorrer da proibição de pisar no câmpus. Alegou que, como orientava teses de mestrado e doutorado, não podia deixar os alunos à deriva. A resposta da Justiça veio no sábado 30 de setembro, dois dias antes do suicídio: Cancellier estava autorizado a entrar na UFSC por três horas em um único dia. A decisão o devastou. “Como pode?”, perguntava. “Se demorar um minuto a mais, serei preso?”
A humilhação a conta-gotas ajudou a reforçar o quadro de stress pós-traumático do reitor, como a psiquiatria define a reação descontrolada do cérebro diante de um evento que está além de sua capacidade de absorção. “É como se o sistema de defesa do organismo entrasse em pane”, compara o psiquiatra Marcelo Fleck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Maria Oquendo, uma porto-riquenha baixinha que se tornou um gigante da psiquiatria americana e autoridade mundial em suicídio, diz que é dificílimo evitar a morte de vítimas desse tipo de stress. Elas nunca falam em suicídio, embora pensem no assunto constantemente. Um trauma como o que consumiu o reitor vira motivo de obsessão — mas, de acordo com as estatísticas, raramente conduz ao atentado à própria vida.
O reitor foi um dos raros casos. Na véspera de seu suicídio, sabe-se hoje, já estava tudo calculado. Ele recusou o convite dos irmãos para assistir a uma partida de futebol em que o clube de coração da família, o Hercílio Luz, tinha chance de voltar à elite catarinense. Preferiu sair com o filho Mikhail. Almoçaram, ele quis ver se estava tudo em ordem em sua casa, mas recusou-se a ficar para uma sessão de filmes na TV. “Preciso descansar”, despistou. Em vez de descansar, foi ao shopping em que morreria, assistiu a um filme e levou consigo a chave do apartamento, de modo a forçar seu irmão Acioli a dormir em outro lugar. Queria ficar sozinho na última noite. As cinzas de cigarro espalhadas pelo apartamento mostram que fumou ferozmente, quebrando a abstinência imposta pelo cardiologista. Escreveu quatro bilhetes. Um para o filho, outro para os irmãos, um terceiro para um amigo e o quarto carregou no próprio bolso. É o único cujo conteúdo é conhecido. “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”, diz o bilhete, com a ênfase dos três pontos de exclamação. No dos irmãos, referiu-se à imensidão do amor pelos dois, mas disse que a dor que o dilacerava era maior que tudo. Deixou bilhetes e documentos separados em uma pequena caixa no escritório de casa, encontrada por Mikhail. O filho disse: “O pai cumpriu a missão aqui”.
Até hoje, sabe-se apenas que o “esquema criminoso” durou principalmente de 2005 a 2015, quando Cancellier nem estava na reitoria. A Capes, que investigou o assunto, diz que o “esquema criminoso” era uma coleção de pequenas falcatruas de servidores escroques, sem a dimensão que se divulgou. O coordenador do programa do ensino a distância da Capes, Carlos Lenuzza, não revela detalhes da investigação, mas adianta: “Os valores dos desvios são muito distantes daquilo que se falou”. Até agora, um mês depois do suicídio do reitor, ninguém foi acusado formalmente de nada, e a polícia não chegou ao valor real que foi desviado. Ao ver a notícia do suicídio na TV, Zé, o garçom, desabou. Nem sabia que o amigo de toda a vida era reitor.
Colaborou Maria Clara Vieira
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição nº 2556