Com a palavra, os monstros
Em 'Mindhunter', a nova série de David Fincher, um agente dos anos 70 afronta o FBI ao estudar a mente de assassinos
Enquanto seu parceiro de trabalho no FBI curte o dia de folga jogando golfe, o agente Holden Ford (Jonathan Groff) passa a tarde num presídio da Califórnia a bater altos papos com uma figura pouco agradável. Com 2 metros de altura e 140 quilos, seu interlocutor existiu de fato: Ed Kemper (Cameron Britton, um gigante também em cena) começou a carreira de assassino serial aos 14 anos, ao trucidar os avós. Internado em um manicômio, convenceu os psiquiatras de que estava recuperado — e recebeu outro atestado de sanidade bem no dia em que trazia no carro a cabeça de uma das seis adolescentes que havia matado, esquartejado e estuprado (sim, nessa ordem). Por fim, Kemp assassinou a própria mãe, arrancou-lhe a cabeça — que usou para satisfazer sua perversão necrofílica — e triturou a faringe dela num processador de legumes. Corria o verão de 1977 e Ford — protagonista de Mindhunter, série criminal já disponível na Netflix — postava-se sem anteparos diante do grandalhão que se entregou à polícia por se cansar de enganar os investigadores. Livre de algemas, Kemp diz que poderia facilmente quebrar o pescoço do outro. Mesmo assim, Ford se deixa manipular e abre o coração sobre sua vida amorosa. Vai se exibindo, enfim, como um cordeirinho que atiça um predador. A tensão intoxicante atinge o ápice quando o assassino aperta a garganta de Ford para explicar que tipo de excitação extrairia de uma cabeça cortada. E então…
Mindhunter, a série, tem a credencial curiosa de ser produzida por Charlize Theron — mas o que lhe confere respeitabilidade é, sobretudo, a presença nos créditos de David Fincher, diretor de thrillers criminais como Seven e Zodíaco e grife por trás de House of Cards. Para além das feras do entretenimento, Mindhunter ostenta outro documento respeitável: sua trama se baseia no livro homônimo (que está saindo no Brasil pela Intrínseca) escrito por uma lenda da polícia americana. Nos anos 70, o agente John Douglas — inspiração do personagem Holden Ford — desbravou um campo riquíssimo da ciência forense, o estudo psicológico dos assassinos. O pioneirismo fez dele uma figura pop. O investigador vivido por Scott Glenn em O Silêncio dos Inocentes não só se inspirou em Douglas: o agente de verdade quase assumiu seu papel no filme de Jonathan Demme, mas sua participação foi vetada pelo FBI.
Quando desbravou o estudo dos perfis de criminosos, porém, Douglas enfrentou oposição e desconfiança dentro da instituição. Administrado com o estilo férreo de J. Edgar Hoover desde o seu embrião nos anos 20 até o início dos 70, o FBI via qualquer uso da psiquiatria para fins investigativos como baboseira. Como se dizia nos corredores do cenário principal da série e do livro, o centro de estudos e aprendizado do FBI em Quantico, na Virgínia, aquilo era coisa de “rapazes desencaminhados” (leia-se: acadêmicos hippies e gays). A ideia de ouvir assassinos monstruosos assomava, então, como um ultraje à dignidade policial. Só a muito custo e reprimendas mil Douglas conseguiu realizar seu desejo de entrevistar os maiores assassinos seriais nas cadeias americanas e impor o valor de sua iniciativa.
Quando Ed Kemper, o notório “Assassino das Colegiais”, pergunta qual a razão de alguém ir àquele inferno para colher seu depoimento, Ford tem um rasgo de sinceridade: “Eu não sei”. Mindhunter funciona, percebe-se em cenas assim, como um testemunho franco (e narrado, evidentemente, com a ironia da distância histórica) de um homem que nadava à deriva contra uma corrente irresistível. Ao dar aulas a outros agentes sobre negociação de reféns, função vista como inferior a que ele foi relegado após uma pisada na bola em serviço, Ford tem de suportar o desdém de alunos calejados. Em seu périplo por delegacias do interior, suas pensatas sobre filosofia grega e Shakespeare rendem reações indignadas. Como usar de referências tão nobres, queixa-se um velho policial, quando a comunidade se mobiliza na caçada a um demônio capaz de matar uma mãe e seu filhinho e empalá-los com um cabo de vassoura?
Talvez a desconfiança em relação ao emprego das ciências humanas venha da sua origem fantasiosa. Como se constata em Mindhunter, está-se diante de um caso curioso em que a polícia imitou a ficção (confira o quadro abaixo). “Os primeiros detetives que usaram a psicologia vieram da literatura, não do mundo real”, disse a VEJA Mark Olshaker, roteirista e parceiro nos nove livros de memórias escritos pelo agente John Douglas. Foi da mente do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849) que nasceu o primeiro ás na matéria, o detetive Auguste Dupin — que, por sua vez, seria a inspiração do inglês Arthur Conan Doyle na criação, no fim do século XIX, do mais popular dos detetives da ficção, Sherlock Holmes.
Qualificar como ciência a utilização da psicologia para investigar assassinos é controverso: nem entendidos como Douglas e seu parceiro chegam a tanto. “Há ciência, mas também um tanto de arte nisso”, diz Olshaker. A parcela da arte vem do uso da imaginação para tecer narrativas capazes de explicar o comportamento de um matador — ou da compreensão de seu “estilo” criminal como uma profissão de fé estética. “Para entender a arte, ouça o artista”, era o lema de Douglas. Além de Ed Kemper, o agente real do FBI entrevistou Charles Manson, líder da seita que nos anos 60 assassinou a atriz Sharon Tate, então grávida do cineasta Roman Polanski. E, ainda, criminosos como Ted Bundy e John Wayne Gacy. A série desenrola-se como uma crônica dos encontros de Holden Ford com as mentes macabras. Se o personagem, assim como sua contraparte real, vai trombar com Manson e outros astros do crime, é algo que ficará aqui em suspense.
DA FICÇÃO À REALIDADE
A análise psicológica detetivesca apareceu na literatura bem antes da consagração da psicologia criminal como ferramenta pela polícia — inclusive pelo FBI
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552