Clima de terra sem lei
Frase da procuradora-geral Raquel Dodge sobre o Rio traduz uma sensação palpável, com a prisão de três ex-governadores e dois ex-presidentes da Assembleia
O ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho foi sempre afeito a tiradas de humor. Na terça-feira 21, ele fez circular nas redes sociais um vídeo logo depois de anunciada a prisão dos três deputados estaduais de maior influência na política fluminense — Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi —, todos do PMDB. “O PMDB é o Partido do Movimento Democrático de Benfica”, espezinhava Garotinho, referindo-se à Casa de Custódia de Benfica, presídio na Zona Norte carioca onde segue preso o ex-governador Sérgio Cabral, também do PMDB. E finalizou com uma bravata: “A faxina ainda não terminou”.
Não terminara mesmo. Na manhã seguinte, Garotinho foi surpreendido com o decreto da própria prisão e da de sua mulher, Rosinha Garotinho, que também comandou o Palácio Guanabara. Os dois terminaram em Benfica. A piada precoce perdeu a graça. E, ao lado da turma do PMDB, foram dar na cadeia duas estrelas luminosas do PR. Fez-se história. A quarta-feira 22 entrou para os anais do Rio por um dado vergonhoso: todos os governadores eleitos desde 1998 e todos os ocupantes da presidência da Assembleia Legislativa desde então estavam encarcerados sob a acusação de se alimentarem de propinodutos que lhes encheram os bolsos enquanto dilapidavam o caixa estadual.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, resumiu a situação fluminense com uma frase cortante: “Há um clima de terra sem lei que domina o Rio”. A percepção é real, o clima é esse mesmo, mas convém ressaltar que a prisão das mais poderosas autoridades do estado nos últimos vinte anos é uma demonstração de que algo está sendo feito para desenterrar a roubalheira. Com os trabalhos do Ministério Público Estadual e do braço regional da Lava-Jato, a expectativa é que muita lama ainda virá à superfície. “As investigações não estão nem perto do fim”, diz Eduardo El Hage, que lidera a força-tarefa no estado. Na quinta-feira 23, foi decretado o retorno à prisão da ex-primeira-dama Adriana Ancelmo. Já o governador Luiz Fernando Pezão, da turma de Cabral, é investigado por recebimento de milhões de reais de empreiteiras e empresas de ônibus. Na Assembleia Legislativa, deputados ligados aos caciques peemedebistas não escondem o medo de cair — o que ajuda a entender por que, em sessão do dia 17, a maioria decidiu livrar da prisão Picciani e os outros sem sequer seguir o rito usual, de levar a decisão do Legislativo ao Judiciário, aproveitando uma brecha aberta pelo Supremo Tribunal Federal (leia a Carta ao Leitor). O trio voltou à prisão quatro dias depois.
Ao desnudar pouco a pouco a teia de corrupção que sustenta a política fluminense, a investigação expõe o saldo de duas décadas de crimes do colarinho-branco. O fato de o Rio ter sido o polo mais dinâmico do Brasil colonial e sede do poder por dois séculos criou um ambiente favorável à proliferação de balcões de negócios na administração pública. Antes da vinda da corte ao Rio, as instituições portuguesas quase não fiscalizavam os governos locais. Pesava o receio de que uma vigilância efetiva pudesse causar rebeliões incontornáveis. “Praticamente todos os administradores instalados aqui foram denunciados ao rei por práticas ilícitas, mas a Coroa fazia vista grossa”, diz a historiadora Adriana Romeiro, autora do livro Corrupção e Poder no Brasil. “E, no entanto, o Rio era considerado na Europa o lugar mais corrupto de todo o Atlântico Sul.” Em 1808, a chegada da corte embaralhou mais ainda a noção de público e privado. Títulos de nobreza foram distribuídos às centenas por dom João VI em troca do sustento da realeza.
Para registro: um dos primeiros governantes da então capitania do Rio de Janeiro preso por malfeitos foi o militar português Salvador Correia de Sá e Benevides (parente de Estácio de Sá, fundador da cidade). Em 1663, foi acusado de receber propina em troca da autorização para navios holandeses carregarem o açúcar brasileiro para fora do país. Assim ele era descrito à época: “Governante venal, ambicioso e despótico (…), valendo-se da autoridade do cargo para extorquir não só moradores, mas também os que passavam pelo Porto do Rio de Janeiro”. Para não perder o fio da meada, convém relembrar: o relato é de 1663.
A corrupção que a Lava-Jato agora escancara no Rio é uma chaga nacional entranhada em todas as esferas de poder. Mas há algumas especificidades na miopia ética fluminense. Uma delas é a histórica acomodação entre o lícito e o ilícito, por convicção ideológica ou interesses escusos. Nos tempos de Leonel Brizola, que comandou o estado duas vezes (1983-1987 e 1991-1994), os traficantes começaram a dominar territórios enquanto a polícia se esquivava do confronto. Desde os anos 1980, governadores têm sido mais que lenientes com contraventores que tocam o Carnaval carioca e o jogo do bicho. Em 1991, o atual ministro e então governador Moreira Franco foi flagrado em clima de festa com a cúpula da contravenção. VEJA apurou que, em 2006, foi a vez de Cabral procurar o notório bicheiro Anísio Abraão David: pediu a ele ajuda financeira na reta final da campanha. A proximidade da classe política com o poder paralelo nas favelas também é evidente. Para crescer eleitoralmente na populosa e pobre Zona Oeste, o clã Garotinho aliou-se a milicianos (um deles chegou a ser nomeado na gestão Rosinha). “A relação promíscua com criminosos no Rio se dá na medida em que eles exercem controle territorial”, diz o cientista político João Trajano Sento-Sé. Isso, claro, traz votos.
O PMDB passou a ser hegemônico no Rio no primeiro governo Cabral, em 2007. Desde então, esparramou seu raio de influência por todos os poderes, oferecendo verbas e cargos a aliados com um vigor que só encontra paralelo na era chamada de “chaguista”. Ao contrário de célebres ex-governadores, como Carlos Lacerda e Brizola, que sofreram forte oposição do Legislativo, Chagas Freitas (eleito indiretamente governador pelo MDB fluminense em 1970) sempre teve o controle da Assembleia, assim como tem o PMDB de hoje. “O chaguismo está na raiz da prática clientelista que se renova no Rio”, explica o economista Mauro Osorio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, a base governista tem cinquenta dos setenta deputados. A máquina peemedebista, com mais de uma dezena de partidos aliados, chegou a ocupar 80% das prefeituras do estado — ou seja, viveu quase sem oposição e ainda por cima sob as generosas asas dos governos Lula e Dilma. Não parou aí: o Ministério Público estadual arquivou as principais denúncias contra o grupo de Cabral, e o Tribunal de Contas, que deveria fiscalizar o governo, sempre lhe foi benevolente (cinco dos sete conselheiros, aliás, foram presos por fechar os olhos à roubalheira), talvez no caso mais ilustrativo da história sobre o significado do termo “quadrilha”.
Acredite: Cabral e Garotinho já estiveram juntos. Antes de conquistar o Palácio Guanabara, o PMDB compôs a base dos governos Garotinho e Rosinha. Mas a ascensão de Cabral fez Garotinho se sentir enganado. Em 2010, ele deu a um grupo de deputados com quem almoçava em uma churrascaria uma pista sobre o que o incomodava. Dois dos presentes contaram a VEJA que Garotinho levantou a voz para falar mal do empresário Arthur de Menezes Soares, conhecido como Rei Arthur (acusado de comprar votos na escolha do Rio para sediar a Olimpíada). O Rei Arthur havia quebrado a promessa de lhe dar recursos para campanhas porque preferira agradar à ala cabralina, com quem viria a amealhar 1 bilhão de reais em contratos. Em outra ocasião, todos saíram felizes: um delator da Odebrecht relatou ter irrigado tanto o caixa de Cabral como o do casal Garotinho.
Nesse balé de encontros e desencontros, cabralinos e garotinhos voltaram a se esbarrar, desta vez no pátio da Casa de Custódia de Benfica. O casal Garotinho foi parar lá acusado de receber da enroladíssima JBS verbas por meio de caixa dois para campanhas políticas. Cabral, Picciani e Paulo Melo, autoridades supremas em caixa dois, são denunciados também por enriquecimento ilícito.
Além de tudo, o Rio está mergulhado na pior crise financeira de sua história. A debacle econômica, é verdade, tem sua origem lá atrás, quando Juscelino Kubitschek levou a capital para Brasília, em 1960. Mas uma sequência de decisões desastradas tratou de enterrar qualquer chance de o estado reaver a prosperidade, inclusive com a Olimpíada, cujas obras engrossam agora a lista da Lava-Jato. Houve até esperança recente de que o Rio deixaria o atoleiro, empurrado pelos royalties do petróleo e pelas Unidades de Polícia Pacificadora, programa-vitrine que chegou a retirar o controle de nacos da cidade das mãos do tráfico. Ainda não foi dessa vez.
Dinamitadas pela queda vertiginosa na receita do petróleo e pela corrupção sem freios, as contas públicas cravam o pior rombo do Brasil (19 bilhões de reais), e os índices de criminalidade atingem níveis inéditos. A receita para recuperar o Rio é clara:
– Continuar a faxina da Lava-Jato, fechando os dutos que alimentam a roubalheira e degeneram o tecido social;
– Retomar a responsabilidade fiscal na esfera pública, cuja ausência explodiu o caixa do estado, e vencer a ilusão de que o petróleo é uma riqueza fácil;
– Combater a criminalidade comum sem condescendência e à base de inteligência policial, área desidratada pela falta de recursos.
Só assim o clima de terra sem lei será coisa do passado.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558
A reação de Lula ao ser aconselhado a decretar intervenção na segurança do Rio
A provocação de Lázaro Ramos após megaoperação no Rio
Quem são os chefões do Comando Vermelho mortos na megaoperação do Rio
Paulo Betti causa divergências ao falar sobre megaoperação no Rio
Combate ao tráfico: Cláudio Castro se sai melhor que Lula, aponta pesquisa







