“Cito a Bíblia todo dia”
Prefeito do Rio, que não vê problema em misturar religião e política, diz que está aprendendo a governar e que não pretende posar com rainha de bateria
Ao longo do primeiro ano à frente da prefeitura do Rio de Janeiro, o carioca Marcelo Crivella (PRB), 60 anos, foi tachado de “prefeito sumido”, mas deu muito que falar. Ao alçar a cargos fundamentais pessoas ligadas à Igreja Universal, fundada pelo tio Edir Macedo, e cortar verbas da Parada Gay e do Carnaval, ao qual deu as costas evaporando-se dos eventos oficiais, cultivou a imagem de um político cioso de seu rebanho. Defendeu também os de casa: tentou emplacar o próprio filho na pasta da Casa Civil, caso que ainda será examinado pelo Supremo Tribunal Federal. Engenheiro de formação e bispo licenciado, o ex-senador e ex-ministro da Pesca afirma que o mérito o tem conduzido em suas escolhas. Nesta entrevista, diz que herdou uma bomba-relógio da gestão anterior e passa a mão na cabeça do aliado Anthony Garotinho, ex-governador atolado em denúncias.
Em seu primeiro ano de gestão, o senhor ganhou o apelido de “prefeito sumido”. É injusto? Claro. Pergunte ao ascensorista se não sou o primeiro a chegar à prefeitura todos os dias às 7 da manhã. Agora, não sou um homem que veio para estar nos holofotes do palco. Faço política discretamente. Esse é o meu estilo.
Por que tantas viagens ao exterior? Como as empresas brasileiras quebraram, preciso ir atrás de parcerias fora. Na China, por exemplo, fechei um acordo com um pessoal que vai melhorar a iluminação pública do Rio. Até uma fábrica de luminárias os chineses estão prometendo trazer para a cidade. Também estive na Rússia e em Dubai atrás de novos investimentos. Não foi para passear, não.
E o porquê das viagens à África do Sul, onde o senhor atuou por uma década como bispo da Igreja Universal? Fui uma vez na Páscoa, pagando do próprio bolso, e na outra aproveitei uma escala para ficar por lá. Fui rever meus amigos. Adoro aquele país. Se fossem outros políticos do Rio, garanto que parariam em Paris.
Qual nota o senhor daria ao seu governo até agora? Não vou dar nota, mas posso dizer o seguinte: herdei uma bomba-relógio na prefeitura do Rio de Janeiro. A Olimpíada me deixou como legado uma manada de elefantes brancos, que agora, junto com o Ministério do Esporte, pretendo conceder à iniciativa privada. A impressão que tenho é que as administrações anteriores agiam como um pai irresponsável, que vê o filho chorando e o enche de chocolate e refrigerante. O pai sabe que os dentes vão estragar, mas fica feliz de se ver livre das lágrimas da criança. Estou trabalhando para reverter esse quadro sem cair no populismo, como outros fizeram.
O senhor está se referindo a seu antecessor, Eduardo Paes? No último ano da administração dele foram realizados gastos com escolas e clínicas sem nenhum tipo de previsão de custeio. Empenhos de cerca de 1 bilhão de reais foram cancelados no apagar das luzes de 2016. Esses são os fatos. Aliás, quem achava que um evangélico no poder seria o populista se enganou.
O senhor tem falado com Paes? Às vezes. Outro dia estávamos conversando e ele me disse que vai retornar para o Brasil para ser governador. Eu disse: “Se você conseguir essa proeza, fique tranquilo, pode voltar a morar na residência oficial da prefeitura, na Gávea Pequena. Não a uso mesmo”. Mantenho a civilidade com Paes. Acredito, inclusive, que ele não sabia das roubalheiras do seu secretário de Obras (Alexandre Pinto, preso pela Operação Lava-Jato acusado de cobrar propinas).
E os seus erros até agora, quais foram? Hesitei muito em tomar decisões drásticas como, por exemplo, trocar secretários. É o preço que a gente paga por estar começando. Espero que o povo tenha paciência com os meus equívocos. Afinal, não fui eleito para ser perfeito, mas para ser prefeito.
O senhor cortou recursos da Parada Gay, do Carnaval e da tradicional procissão de homenagem a Iemanjá no Rio. A religião pesou nas decisões? De maneira alguma. A prefeitura vive uma severa crise e não tenho recursos para gastar com eventos. Mas garanto alvarás e licenças em respeito à livre manifestação do povo. Forneço também guardas municipais para fazer a vigilância e garis para a limpeza.
Além de cortar verbas para o Carnaval, o senhor não participou da festa. Desta vez a religião pesou? Cortei a verba porque precisava de recursos para investir em creches e creio que o Carnaval tem potencial para andar por conta própria, sem depender do Estado. O desfile das escolas de samba fatura com ingressos e patrocínio. Não fui ao Sambódromo porque minha promessa de campanha é cuidar das pessoas, e não sambar na avenida. O que diria meu eleitor se eu fosse lá para tocar pandeiro e aparecesse do lado de uma rainha de bateria? Não é justo que, para receber aplauso, eu crie um clone de mim mesmo e vire um soldado da demagogia.
O senhor vetou a exposição Queermuseu no Rio alegando que ela fazia “profanação de símbolos de culto”. Aí foi uma decisão do prefeito ou do bispo Crivella? Aquela exposição ofendia o catolicismo, e as pessoas que me elegeram exigem de mim respeito a todas as religiões.
Durante a campanha, o senhor prometeu que não nomearia ninguém ligado à Igreja Universal. Por que colocou um primo de Edir Macedo, Fabio Macedo, no cargo de administrador da sede da prefeitura? Não consta em lugar nenhum que, só por ser parente do Macedo, ele não possa exercer essa função. Fabio tem experiência, já trabalhou até em obras da Odebrecht na África e está fazendo um trabalho extraordinário.
O senhor também nomeou um bispo para o comando do serviço da Defesa do Consumidor. Ele é licenciado, assim como eu. O que eu disse na campanha é que não colocaria na prefeitura pastores na ativa, até porque eles estão ocupando púlpitos e não querem vir para cá.
A Igreja Universal não se beneficia de ter um bispo licenciado no comando da prefeitura? Posso garantir que a Igreja Universal não recebe nenhum favor do meu governo. Ao contrário: ela é que nos ajuda com doações de alimentos e em campanhas contra a dengue. Quando eu era pastor, servia ao povo da minha igreja. Agora, na política, minha missão é servir a todos. Quem sabe, vendo as minhas boas obras, o povo agradeça ao nosso Deus que está nos céus. Seria sublime se todos conhecessem esse Jesus que amo tanto.
Conquistar fiéis é uma missão sua na prefeitura? Se tenho a intenção de que um dia as pessoas conheçam a minha igreja e se encantem com ela, preciso tratá-las bem e fazer o melhor por elas. Mas não digo essas coisas para beneficiar a Universal, não. Minha fé não fere o princípio democrático.
O senhor costuma trocar ideias com o seu tio Edir Macedo sobre o trabalho na prefeitura? Gostaria muito, mas cada um tem a sua vida. Não nos falávamos havia dois anos, até que nos encontramos, dois meses atrás, em uma celebração da igreja.
Vocês brigaram? Como vou brigar com uma pessoa que admiro tanto? O bispo viaja muito e não fala por telefone.
Por que insistir em nomear o seu filho, Marcelinho Crivella, como o chefe da Casa Civil? Ele trabalhou comigo na campanha eleitoral e contribuiu com excelentes ideias. Estava morando muito bem nos Estados Unidos, não queria vir de jeito nenhum. Apelei dizendo que nunca havia lhe pedido nada, e ele cedeu. Achei que, nomeando-o, eu estaria mostrando ao Rio que estou dando o meu melhor à cidade.
Não há uma confusão ética aí? Consultei advogados e a procuradoria do município. Eles foram unânimes em dizer que a nomeação era legal. Mostrei meu filho a todos os ministros do Supremo Tribunal Federal que vão julgar a ação. A intenção do meu coração é a melhor de todas. Estou absolutamente tranquilo quanto a isso.
O senhor foi ministro de Lula e teve o apoio da família Bolsonaro no segundo turno da eleição do Rio de Janeiro. Apoiará algum dos dois em 2018? São candidatos expressivos, porém em campos muito radicais. Precisamos de forças conciliatórias para o imprevisível processo eleitoral de 2018. Meu partido, o PRB, aguarda o surgimento de uma liderança de centro que desperte a fé das pessoas. Está tudo muito indefinido ainda, mas acho que na hora certa o eleitor vai evitar os extremismos e optará pelo voto conservador.
Conservador também nos valores? Sim, sem dúvida. Os fundadores do Estado americano — Thomas Jefferson, George Washington, John Adams — eram homens de oração que, no entanto, jamais tentaram doutrinar. Propagaram princípios e valores cristãos altamente benéficos para a sociedade. Faço o mesmo: leio a Bíblia desde os 9 anos e não passo um dia sem citá-la. O problema não é misturar política e religião, mas sim Estado e Igreja.
O esfacelamento do PMDB fluminense abre caminho para uma possível candidatura sua ao governo do estado? Não caio nessa tentação de largar a prefeitura. Quanto ao PMDB, espero que essas pessoas possam ser reeducadas para que sirvam melhor a Deus pelo resto da vida. Perdi três eleições para campanhas multimilionárias peemedebistas. Eles riam das minhas. Eu concorria como um bandeirante de facão em punho abrindo trilhas na mata. Uma hora, venci.
Mas o senhor também foi citado na Lava-Jato por um funcionário de um doleiro que diz lhe ter pago propina de empresas de ônibus entre 2010 e 2012. Qual é sua defesa? Mentira nasce morta. Eu era ministro da Pesca na época. Por que empresas de ônibus me dariam propina? Para eu autorizar a pesca de passageiros?
O senhor garante então que nenhuma campanha sua teve caixa dois? Que eu saiba, não. Nunca fui tesoureiro da campanha. São acusações desse tipo que podem pôr tudo a perder na Lava-Jato. A operação é a derradeira tentativa de ideal democrático da nossa pátria. Juízes, delegados e procuradores não podem deixar de ser justos para se tornar justiceiros. Espero que o Fachin, que conheço de longa data, não se transforme em facão.
Logo depois da prisão do ex-governador Anthony Garotinho, o senhor disse que ele “pode ter feito bobagem, mas é honesto”. O que quis dizer exatamente? A magistratura tem sido sábia até agora, prendendo quem enriqueceu de maneira faustosa. Garotinho pode ter cometido exageros e deslizes em épocas eleitorais, mas acho que a punição mais pesada deve ser dada a quem pega o dinheiro para enriquecer. Ele é um pobre que acabou na prisão.
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2018, edição nº 2563